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"O Carnaval precisa de um xerife"
Luzdalva Silva Magi
Especial para o Diário
14/02/2011 | 07:01
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A palavra Carnaval origina-se da expressão ‘adeus à carne' ou ‘carne vale', denominação dada às festas regidas pelo ano lunar do Cristianismo na Idade Média. O compositor carnavalesco tem a grande responsabilidade de divertir e ensinar ao mesmo tempo, pois através do samba enredo das escolas fica mais fácil conhecer os traços culturais de cada região do País. Em entrevista ao Diário, o compositor de samba e professor de História Wellington Kirmeliene, de Santo André, fala sobre suas paixões e analisa os carnavais do Rio de Janeiro, da Capital e critica a "mentalidade vexatória" dos presidentes das agremiações de Santo André.

DIÁRIO - Como surgiu sua grande paixão pelo samba?
KIRMELIENE - Desde pequeno tive contato com o Carnaval e os sambas. Inicialmente era uma relação de raiva, pois lembro que desejava ver desenhos animados na TV, mas, ao ligar o televisor nos dias de folia, não havia nada além de desfile das escolas do Rio de Janeiro. Depois veio o contato com o samba de enredo em vinhetas, que cravejavam a programação pré-carnavalesca. A memória guardou três trechos musicais: um sobre os Trapalhões (Unidos do Cabuçu 1988), um sobre o Marquês de Sapucaí (Imperatriz Leopoldinense 1993) e outro sobre o sonho (Mocidade Independente de Padre Miguel 1992). Estes foram os primeiros contatos, o estopim da paixão. Por volta de 1997, ganhou forma e tomou conta de mim. Procurava CDs de outros anos, depois comecei a caçar LPs. Daí, para virar compositor, foi um pulo.

DIÁRIO - Como professor de História, você exercita seu lado pesquisador quando compõe. É mais prazeroso ou desgastante?
KIRMELIENE - O processo de composição em 90% das vezes é prazeroso, pois permite série de momentos de aprendizagem e enriquecimento. Aprendo novas histórias, outros caminhos para compor, vou refinando a forma de criar a poesia e deixo menos desafinados os meus ouvidos. O problema é quando se chega aos 10% nada prazerosos. Um artista que não tem liberdade para criar ou que não se encanta por sua musa está fadado ao fracasso. É cruel ter de criar poesia em cima de textos sem pé nem cabeça, que ousam chamar de ‘enredo', mas que na verdade trata-se de uma pesquisa ‘copiou colou' de Wikipédia, que nem meus alunos de sexto ano (antiga quinta série) ousam me apresentar!

DIÁRIO - É possível fazer uma leitura satisfatória do contexto histórico através dos carnavais passados? Por quê?
KIRMELIENE - Existem momentos da História do Brasil em que toda produção cultural esteve muito mais entranhada com a realidade e, por isso, permite uma leitura, pesquisa e interpretação melhores. Os exemplos são inúmeros. Os desfiles dos blocos, cordões e grandes sociedades no começo do século 20 no Rio de Janeiro revelam o processo de segregação social e racial que se desenvolvia disfarçado de sanitarismo. Os sambas de enredo durante os anos da Ditadura Militar ora adulavam, ora combatiam o regime vigente. Os enredos do Carnaval de 1988 do Grupo Especial do Rio de Janeiro adotaram na totalidade ou parcialmente a temática negra em função da comemoração dos 100 anos da Lei Áurea que se aproximava.

DIÁRIO - Quais são suas influências culturais?
KIRMELIENE - Meus parceiros e amigos de samba brincam que sou branco por acidente. A minha influência mais forte é a de origem africana. Sou amante dos tambores, atabaques e mitos que vieram da África. Adoro as histórias dos reis, das resistências. Não conheço um ascendente meu que fosse negro. Foi frequentando a umbanda e ouvindo os tambores tocando que se iniciou esse despertar da ‘africanidade'.

DIÁRIO - Fale dos seus trabalhos e quais foram premiados. Há um reconhecimento justo nesta área?
KIRMELIENE - A minha história como compositor de samba de enredo começou oficialmente em 2001. Em 2011 completo dez anos nesta brincadeira. Já perdi muito samba bom e, claro, perdi muito samba ruim. Quando olho tudo o que já compus, chego à conclusão de que fui extremista: ou fiz obras que considero sublimes ou criei monstros que acho medonhos. Dos que perdi, nada superou a dor da derrota injusta (e vou morrer pensando assim) das eliminatórias para o Carnaval de 2005 da Mocidade Alegre aqui de São Paulo. O enredo era sobre a Clara Nunes e naquele ano buscava o tricampeonato de samba-enredo lá. A obra era linda. Mesmo assim foi derrubada na semifinal. A justiça veio na apuração, quando a escola perdeu pontos preciosos nesse quesito. Dos que ganhei e foram premiados destaco dois: o samba de enredo de 2004 da Mocidade Alegre de São Paulo e o do mesmo ano no Bambas da Orgia de Porto Alegre. O primeiro ajudou a escola a levantar o caneco de campeã após 24 anos de fila. O samba foi escolhido o melhor do Carnaval dos 450 anos de São Paulo. A festa de premiação no Tom Brasil foi inesquecível. No caso do Bambas da Orgia, o samba de enredo também ajudou a levar a escola ao título e também foi escolhido o melhor do Carnaval de Porto Alegre. O reconhecimento é muito mais pessoal do que financeiro. Não se valoriza compositor nem mesmo dentro das escolas de samba, quanto mais na mídia. O compositor é ofuscado pela própria obra.

DIÁRIO - O professor/pesquisador e o compositor/poeta se completam?
KIRMELIENE - E como se completam! Quando crio artigos para utilizar em aulas, tento sempre colocar certo feitiço nas palavras, nas letras. Os alunos ficam com aquele olhar contemplativo, reflexivo e imaginativo. Não adianta tapar o sol com a peneira: se o historiador não despertar a poesia das letras, nenhum aluno irá suportar ler um material didático.

DIÁRIO - Quais são seus compositores e intérpretes favoritos?
KIRMELIENE - Sempre gostei muito do que Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte criaram juntos. O mesmo vale para João Nogueira. Se o campo for samba de enredo, sempre gostei da poesia forte de Gelson Vidal, já falecido, e da poesia simples, mas bela, de Djalma Falcão. Também sou muito fã dos meus parceiros de samba. Em relação a intérpretes, o leque é enorme. Sempre achei Clara Nunes a voz mais linda que já ouvi dentre as mulheres. Acho incrível como Ney Matogrosso interpreta as canções. Se o papo for samba de enredo, a lista também é gigante. Sempre gostei de Aroldo Melodia (ex-intérprete da União da Ilha do Governador, já falecido), Neguinho da Beija-Flor, Rico Medeiros (ex-Viradouro e ex-Salgueiro), Luizito (Mangueira) e, claro, o grande Carlos Medina (ex-intérprete de escolas de Porto Alegre). Da nova geração, gosto muito do Gilsinho da Portela, do Ito Melodia da União da Ilha e de uma promessa aqui de São Paulo que é Juninho Berin. Ele é um dos intérpretes da Mancha Verde.

DIÁRIO - Carnaval carioca e carnaval paulista, qual a diferença mais gritante?
KIRMELIENE - Lembro até hoje do carnavalesco Milton Cunha, que já trabalhou nos dois eixos, dizendo que em São Paulo faltava quadril. Não quero parecer racista, mas existem escolas em São Paulo nas quais quase 90% dos componentes são brancos. Aí você começa a sentir falta de quadril, de garra, de vibração e de, fundamentalmente, raiz. Por mais mitológica que pareça ser a ideia do Carnaval sendo fruto dos negros escravos, o samba surgiu na senzala. Não é possível futuro sem passado e nem frutos novos sem raiz. Atualmente, a diferença maior repousa na estrutura dos dois carnavais. Enquanto no carioca há a Cidade do Samba, que facilita o acesso a inúmeros recursos para a confecção dos desfiles das escolas, aqui em São Paulo ainda se tem escolas do Grupo Especial criando alegorias sob viadutos e extremamente suscetíveis às enchentes. No entanto, nosso complexo cultural, a estrutura circulante ao sambódromo é insuperável. No Rio de Janeiro, os carros ainda têm que desviar de fios e pontilhões, tanto para entrar na Sapucaí quanto para sair. Isto tudo sem falar na questão do profissionalismo carioca e do certo amadorismo que ainda reina em São Paulo. O carioca vive a cultura carnavalesca durante todo o ano. Tornou-se ciência acadêmica com cursos de graduação e pós-graduação na área. Já em São Paulo, uma pequena parcela vive o Carnaval o ano inteiro.

DIÁRIO - O que Santo André precisa aprimorar em se tratando de festa carnavalesca?
KIRMELIENE - Tudo! Santo André é uma cidade grande. Mas, quando se fala em Carnaval, parece uma cidade de Interior. Não há estrutura para nada. Os desfiles ocorrem em locais sem planejamento. As escolas de samba, geralmente, apresentam pouquíssimas atividades sociais ou culturais entre os carnavais, limitando-se em eliminatórias de samba de enredo, ensaios e escolhas de rainhas de bateria. Você vai assistir a um desfile e não tem onde parar o carro. Deixa na rua e não sabe se voltará a vê-lo. A verba para as agremiações montarem seus desfiles é imoral. As bandas que sempre foram uma referência na cidade acabaram sendo cobertas pela poeira do tempo. A divulgação carnavalesca é uma vergonha. A mentalidade de carnavalescos e, principalmente, dos presidentes das escolas de samba, é vexatória. Cada um dos mandatários só pensa em tirar vantagem para sua agremiação. Pensam em status e contratam carnavalescos do Rio de Janeiro, de São Paulo que, raras vezes, dão resultado. É muito dinheiro gasto de forma errada. Isto quando algum presidente não some com o dinheiro da verba e a escola fica a ver navios. Este tipo de fato já ocorreu aqui algumas vezes. No quesito Carnaval, Santo André é uma cidade do faroeste. Procura-se um xerife!

DIÁRIO - Já dizia o poeta que somos o ‘túmulo do samba'. Esta afirmação procede?
KIRMELIENE - O Brasil é berço e túmulo do samba. Não é só em São Paulo que existem ‘coveiros' prontos a enterrar o samba e não é só no Rio de Janeiro que estão as ‘parteiras' aptas a trazer sambas à luz. Há samba bom e novo nascendo em todo lugar do País. Nos botecos, nos terreiros, nas quadras das escolas de samba, nas rodas de amigos depois daquele futebol de fim de semana. A mídia tem o poder de sacralizar e diabolizar qualquer coisa. No caso das escolas de samba, quando elas escolhem um samba ruim, frio, sem lirismo, que repete a mesma melodia há dois ou três carnavais, isto se dá pelo fato de temerem ousar e perder pontos no dia do desfile. Os jurados da avenida, por sua vez, acabam dando notas e justificando de forma muito discrepante. A mesmice dá uma falsa sensação de segurança. O ‘túmulo do samba' não é uma cidade ou um Estado. É a mediocridade de quem acha belas a mesmice e a pobreza antipoética e anti-lírica.




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