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A vida debaixo das pontes na região
Renan Fonseca
Do Diário do Grande ABC
19/06/2011 | 07:00
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Marcelo Silva, 42 anos, consegue ouvir todas as noites os carros que passam pelo viaduto Tereza Delta, em São Bernardo. O vento produzido pelo trafegar dos automóveis movimenta a cortina improvisada, que também serve de entrada para a pequena residência. No canto escuro do quarto ficam pedaços de pão, papéis com alguns rabiscos e o isqueiro dois/um - um aparelho libera o gás, outro serve apenas para produzir a centelha. Com fortes dores do estômago, ele se encolhe enrolado nos pedaços de trapos sujos e mal cheirosos. O inverno passou de pesadelo para vilão noturno. Uma fogueira pode atrair insetos e uma sessão de pancadas de policiais. Por isso, o jeito é beber ou se drogar até esquecer da tristeza, frio e fome.

Mesmo com todos os avanços na construção de moradias e novas políticas habitacionais, como o Programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, o jargão morar debaixo da ponte é realidade no industrializado Grande ABC. A criatividade é maior que a fome para os farrapos humanos que se escondem em fendas ou buracos escavados sob os viadutos.

Marcelo está há 20 anos na situação de miséria total. Debaixo do Tereza Delta, ele se esgueira em um espaço no concreto. Ali, passa as noites lembrando da filha, hoje com 17 anos, que largou em um bairro afastado de São Bernardo. "Minha família tem vergonha por eu usar drogas. Por isso, resolvi largar todos", disse, com as mãos sujas, trêmulas, que seguram um pedaço de pão duro e um pouco verde.

Os poucos trocados que consegue por semana vêm da coleta de materiais recicláveis. Às quartas-feiras, ele se dirige para a feira livre na Avenida Kennedy. "Vigio os carros estacionados, pego restos de comida e depois volto para casa", explicou. Às sextas-feiras, ele recorre às igrejas católicas para tomar banho e conseguir algum agasalho. A rotina semanal só é atrapalhada pela cola de sapateiro, maconha ou algum químico barato que compra com o pouco dinheiro da reciclagem.

Marcelo mantém um desejo, que é contado como se ainda fosse uma criança. "Queria encontrar uma lâmpada com gênio. Pediria para voltar dez anos no tempo. Queria ter minha filha por perto, não ter entrado na vida das drogas e estar no calor da minha casa."

FILHO ASSASSINADO
Debaixo do Viaduto Presidente Castello Branco, em Santo André, os excluídos se escondem atrás das colunas. Forram o chão com papelão ou colchões surrados, que exalam cheiro de urina. Garrafas pet são encontradas aos montes, sempre com restinho de tinta ou completamente amassadas - o que indica o uso da cola. E ali tenta viver Érica Bernardes, 51 anos, que desde os 15 percorre a cidade improvisando abrigos e usando os diversos tipos de entorpecentes. Ao lado dela, Santista, um vira-latas gorducho e manso, divide os restos de marmita que encontra nas lixeiras de restaurantes da Avenida Dom Pedro II.

"Os viadutos são minhas casas, mas também me fazem lembrar de algo triste." Relutante, Érica explicou o motivo de chorar todos os dias quando acorda sem ter um gole de cachaça. "Meu filho de 15 anos foi morto por policiais. Nunca fizemos mal a ninguém, mas ele não tinha boas roupas e vivia pedindo esmolas no farol", contou, e logo em seguida bebeu um longo gole da bebida. A entrevista foi feita às 10h de uma quarta-feira.

Érica possui vários amigos que compartilham o espaço debaixo do Castello Branco. Márcia, um travesti que vive da prostituição, se aproxima e logo mostra as feridas abertas nos joelhos. Nos braços, trapos escondem marcas roxas e cicatrizes. "Alguns caras aparecem aqui só para me bater. Jogam dois ou cinco reais no chão e vão embora", relatou.


Sem-teto sonha em criar instituição beneficente 

O sonho de Branca pode parecer conto de fadas se for levado em conta a disponibilidade de recursos. No quintal de casa ela planeja horta comunitária, campo de futebol, salão de dança, playground e espaço para capoeira. Mas, por enquanto, a organização não governamental de Branca ainda está presa aos sonhos. Matilde Domingues Nazareno, 46 anos, nasceu em Parati, Rio de Janeiro, e fugiu do marido agressivo há 15 anos. 

Naquela época, desembarcou em São Paulo e rumou para Diadema. Sem dinheiro, dormiu dois meses na rua até encontrar uma vala no viaduto da Rodovia dos Imigrantes, que passa sobre a Avenida Doutor Ullysses Guimarães.

No canto escuro abaixo da rodovia, colunas de concreto se transformaram em paredes. Colchões, tapetes e um sofá mobiliam a pequena sala, onde pelo menos cinco convidados dormem diariamente. Do lado de fora, dois sofás também foram acomodados e circundam um fogareiro, onde Branca esquenta água ou comida. Ela limpa o espaço externo ao redor do fogo e senta para contar sua história. Ela tem Ensino Médio e curso técnico de eletricista. Garante que também sabe cortar cabelo, pintar unhas e fazer maquiagem. "Mas quando percebi que posso ajudar meus amigos, decidi dedicar minha vida a esse espaço", comenta.

Dois filhos ficaram no Rio de Janeiro. "Um estuda música e outro, Letras. Eles não sabem como estou vivendo. Mas um dia vou refazer o contato."

Mendigos, adolescentes que vivem de trocados do farol, gays, lésbicas e viciados. Todos recorrem a Branca quando o tempo esfria, a comida acaba ou algum cliente espanca o travesti. "Considero todos como filhos, e por isso me respeitam. Aqui eles sabem que ninguém vai ofendê-los", garante a matriarca.

Dois jovens não gostaram da presença da equipe do Diário no espaço. Mas, tão logo Branca chegou, eles se acalmaram e pediram desculpas.

Vanuza Miranda Silva, 35 anos, é uma das pessoas que procuram o improvisado de Branca para se abrigar do frio. Vanuza também é moradora de viaduto. Ela e o companheiro, que não quis se identificar, vivem debaixo da ponte da Rodovia dos Imigrantes, sob a Avenida Eduardo Ramos Esquível. "Aqui é mais quentinho e os policiais não vêm para bater na gente", conta, enquanto o acompanhante remexe na sacola cheia de achados.

Vanuza tem pasado semelhante ao de Branca. Ex-marido violento, ela deixou três filhos na antiga casa, no bairro Eldorado. "Agora fico na rua e não pretendo voltar. Quando fico triste, meu namorado consegue um pouco de cola para cheirarmos", relata.

Mas, enquanto ninguém escuta a proposta de Branca, ela sonha com crianças jogando capoeira debaixo do viaduto.
 

Homem vive em buraco escavado sob viaduto em São Bernardo 

A equipe do Diário percorreu a maioria dos viadutos no Grande ABC. Poucos são os que não abrigam algum faminto. Até mesmo sob o Viaduto Miguel Etchenique, em frente ao Terminal Ferrazópolis, em São Bernardo, um homem de aproximadamente 40 anos conseguiu improvisar um quarto.

Para dificultar a aglomeração de mendigos debaixo da ponte, a Prefeitura assentou blocos ao chão. Mas, com as próprias mãos, o homem (que aparenta ter problemas psicológicos) escavou a terra no ângulo mais agudo que forma entre o piso e o viaduto. Quem conta como a via é ali é Fabrício, 17 anos, menor que pede esmolas no semáforo. "Não gosto de ficar na casa dos meus pais. Aprendi a viver na rua, e o tio do buraco deixa eu ficar ali, às vezes."

As prefeituras mantêm albergues para receber a população de rua. Somadas, Santo André, São Bernardo e Diadema possuem 734 mendigos. Somente Santo André estipula que 21 vivem debaixo dos viadutos. A cidade é a que possui o maior número de pontes, e a maioria acumula lixo e entulho embaixo - além dos sem-teto. Sob o Adib Chammas, por exemplo, trapos e pedaços de colchões foram esquecidos por algum sem-teto. A mesma situação pode ser vista nos demais viadutos habitados.

Na Avenida Prestes Maia, as ligações Engenheiro Luís Meira e Tamarutaca servem de abrigo rápido para usuários de drogas e ponto de descarte irregular. "A gente procura algo útil nos sacos de lixo e deixa o resto pelo chão", contou Rogério, um adolescente usuário de drogas que preferiu não se identificar. O Serviço de Saneamento Básico de Santo André informou que nos próximos dias vai limpar todas as áreas.




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