Adotar continua sendo exercício de paciência no Brasil. Atualmente no Grande ABC há 355 menores vivendo em abrigos na espera de um lar conforme levantou o Diário e 331 casais interessados em adotar. No primeiro momento parece que é uma conta simples. Apenas 24 crianças vão aguardar por uma nova família que as trate com respeito e carinho merecidos.
Ledo engano, a conta não fecha porque mais de 70% dos interessados indicaram nas Varas da Infância e Juventude que preferem a guarda de menores de até 36 meses, segundo levantamento do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A fila para quem quer adotar é longa, cansativa e burocrática. Em algum momento chega o dia do casal ser contemplado com a guarda de uma criança ou adolescente. Infelizmente há uma outra fila que cresce com o passar dos meses e dos anos e cada vez fica mais difícil encontrar um novo lar. É a das crianças com mais de sete anos.
"O problema é que a maioria quer adotar recém-nascidos, brancos e sem problemas de saúde. É trágico dizer isso, adolescentes em abrigos dificilmente vão encontrar um lar", conta Antonio Fernando de Souza, 58 anos, administrador do abrigo Casa Lar Ebenezer, em Santo André.
São Bernardo é a cidade que mais conta com menores vivendo em abrigos, são 194 e 175 casais inscritos no Cadastro Nacional de Adoção, conforme determina a nova lei da Adoção de agosto de 2009 .
Já em Santo André existe a maior discrepância entre interessados e abrigados, tem 76 casais e 16 crianças, mas isso não significa que os moradores da cidade não podem adotar uma pessoa de qualquer outro município do país.
Para o juiz Eduardo Rezende de Melo, da Vara da Infância e Juventude do Fórum de São Caetano, a dificuldade está na incompatibilidade das crianças com os desejos das pessoas que querem adotar. "A situação é complicada, dificilmente um menino autista de sete anos ou um grupo de quatro irmãos vão conseguir ser adotados", comenta Melo.
Segundo o magistrado, a nova lei permite que os menores fiquem no máximo por dois anos nos abrigos e que o Plano Individual de Atendimento poderá estimular o retorno dos abrigados à convivência familiar no final deste prazo.
Outro problema é a maioridade. Ao fazer 18 anos, os jovens passam a ser considerados desabrigados pela Justiça. "Em tese deveria existir repúblicas para jovens. A lei entrou em vigor 2004 e foi tipificada em 2009. Mas na região não foi feito. É um direito que eles têm", ressalta o juiz.
Grupo realiza troca de experiências
Para incentivar os adultos que querem adotar e a troca de experiência entre os que já conseguiram foram criados os grupos de apoio a adoção em várias cidades brasileiras. No Grande ABC, Santo André, São Bernardo e São Caetano contam com unidades de voluntários.
Para a advogada Lourdes Bernardo, presidente do grupo Primeiros Passos, em São Caetano, a colaboração é uma tarefa necessária para tirar dúvidas de quem está atrás de informações e até para os mais experientes. "Para os pretendentes nós damos conhecimentos vividos na prática. Outro fator é a maneira sobre como revelar para a criança que ela é adotada", conta.
Outra tarefa para os voluntários é conscientizar que crianças com mais de sete anos podem ser uma ótima escolha. "A maioria chega querendo bebês, não é errado, mas pode demorar muito para chegar a sua vez. Por isso temos exemplos de pessoas que fizeram a adoção tardia", fala a também mãe de três crianças adotivas.
Agora, com a nova lei, os pretendentes da sua cidade são obrigados a passar pelo menos por um encontro. Para mais informações sobre os grupos entre no site www.angaad.org.br e clique no tópico Grupos de Apoio.
Casal está na reta final da burocracia
Ter filho da maneira natural era o plano da advogada Marisa Ribeiro, 51 anos, e do professor de educação musical Gustavo Nunes Ornelas, 33. Juntos há sete anos, o casal foi obrigado a desistir da gravidez, após Gustavo ver os procedimentos que a sua mulher teria de passar com a fertilização.
"Seria muito sofrido para ela. Conversamos muito e começamos a visitar abrigos. Primeiro fomos em um em Bauru, no interior do estado e vimos que seria mais fácil adotar", conta o professor.
Na fila há oito meses, desde a decisão final, eles ainda não terminaram os trâmites legais para entrarem definitivamente na fila do Cadastro Nacional.
Eles querem adotar uma criança de três a quatro anos, essa informação pode facilitar. "Não criamos muitas objeções. Sendo mais fácil, ou não, queremos uma criança na fase infantil e amor virá da mesma forma", acredita a advogada, que já é mãe de dois rapazes maiores de idade.
Rotina do abrigo é semelhante à de uma casa cheia de regras
A vida em abrigos se assemelha à de qualquer casa. Essa é a atual filosofia nas moradias para crianças e jovens. O Diário passou um período na Casa Lar Ebenezer, em Santo André e observou os detalhes da convivência entre funcionários, voluntários, administradores e crianças. Todos os 18 abrigados têm horários pré-determinados para tomar banho, ir à escola, comer e dormir. A agenda é cheia para todos.
Entre os menores de idade, sete estão no aguardo de nova família. Inclusive um menino de cerca de seis anos que, ao perceber a reportagem no local, correu para abraçar nossa fotógrafa e deu um abraço. Outro um pouquinho mais velho chegou e disse que era para ele parar porque eles estavam fazendo matéria e não eram um casal de visitantes.
A carência mostra um pouco a face do lugar, mas que é preenchido na maior parte do tempo pela paixão do casal Helma Ferreira, 54 anos e Antonio Fernando de Souza, 58, os responsáveis pelo local.
O Lar é um sobrado confortável com quatro quartos, no Jardim Santo Alberto. As meninas ficam em um decorado com bonecas. O dos rapazes é mais simples e vai passar por reformas. Outro reúne sete berços, todos ocupados. Pelo menos no momento da visita, os bebês dormiam ou brincavam tranquilamente.
Muito diferente do que ocorre nas noites. A dona de casa Helma dorme cerca de duas horas por dia devido aos choros dos pequenos. "Quando um começa a chorar por fome parece um alarme. O impressionante é que um começa a chorar apenas quando o outro para", brinca a dona de casa.
Em 12 anos, o Lar Ebenezer abriu as portas para 246 crianças, sendo que 46 foram adotadas posteriormente e 69% voltaram a conviver com os familiares.
Paixão por crianças move responsáveis pela Casa Lar
O casal Helma Ferreira e Antonio Fernando logo no início do casamento adotou três crianças antes mesmo de ter os próprios filhos. Isso foi em 1977, a dona de casa estava grávida de sete meses quando viu que seria obrigada a criar os três sobrinhos. Foi na Justiça e conseguiu a tutela. Acostumada a viver em família grande, Helma deu à luz mais três.
O destino tornou a bater em sua porta quando uma antiga funcionária do abrigo deu à luz uma menina, que mais tarde foi adotada pelo casal.
"Eu tenho duas paixões na vida: crianças e cachorros. Sempre que puder, eu vou ter em casa. É muito bom. Dá um trabalho danado, mas também é muito gratificante", conta a dona de casa de 1,45 metro de altura.
Se a estatura é pequena, a coragem é maior, ela ainda lava, cozinha e cuida de todas as crianças da Casa Lar Ebenezer (leia texto acima) e ainda paparica o neto recém-nascido.
O metalúrgico aposentado Antonio Fernando também mostra habilidades para cuidar das crianças, mas não pega muito no batente. "Essa parte é com ela, eu cuido da administração", brinca.
Espera maior é para menina branca com até 3 anos
O Cadastro Nacional de Adoção é uma fila em que os pretendentes à guarda precisam se cadastrar. Mas não é, como pode parecer, uma fila única. São várias, conforme as indicações na hora de preenchimento da ficha.
O maior tempo de espera está para quem quer adotar menina, recém-nascida ou com até 3 anos, branca e sem problemas de saúde. Os interessados ganham preferência por menores da sua própria cidade e das imediações. Em média, a guarda definitiva leva de dois a três anos para ocorrer.
Leia amanhã segunda reportagem da série sobre adoção.
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