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Segunda-Feira, 29 de Abril de 2024

Cotidiano
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O castigo pela sobrevivência
Rodolfo de Souza
12/04/2024 | 08:11
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Gilmar


Onde já se viu? O carro levava ajuda para um povo faminto quando recebeu em troca um balaço de canhão, morteiro ou qualquer coisa que o valha. Aliás, os detalhes técnicos do artefato que atingiu o veículo e matou seus ocupantes, de fato não vem ao caso. Importa mesmo é a intenção do sujeito que apertou o gatilho ou de quem o autorizou a fazê-lo. É possível até que nem tenha autorizado, só estimulado. É preciso, afinal, aceitar que o ser humano, em boa parte, carrega no cerne o gene da maldade, aquele que lhe propicia imenso prazer em ver sofrer o irmão.

E o mundo, diante de mais uma cena de horror transmitida via satélite, se encheu de revolta e muito comentou a respeito. Boquiabertas ficaram as pessoas boas, porque são boas, e as más, porque não perdem a oportunidade de ostentar o brilho de uma bondade que não possuem. 

Enfim, é esse o caminho que percorre a humanidade dos tempos modernos, e de todos os tempos, diga-se de passagem. Gente que pratica atrocidades contra o semelhante com a desculpa de defender a paz e a liberdade tem ditado as regras num mundo cada vez mais cruel e perigoso. Ora, parece até que me refiro a alguma ameaça externa, a uma hipotética invasão extraterrestre, de tão hedionda que se nos afigura a questão.

Sangue corria, pois, nas veias das pessoas que por causa desse mesmo sangue insistiam em desafiar o perigo para estender a mão ao próximo. Inconformado, pois, com a natureza sórdida de alguns fica o espírito ao pensar que esse mesmo sangue vermelho, carregado de vida e de entusiasmo por ela, fora derramado justamente por defende-la.

Então, outros corações imbuídos do mesmo sentimento de solidariedade, diante do ocorrido, secaram e perderam qualquer vontade de também levar suprimentos para conter o flagelo da fome naquele lugar. Concluíram que defender a própria pele tornou-se ação mais urgente. Mandou, pois, o seu instinto de sobrevivência que sossegassem seu ímpeto solidário para dar espaço à cautela, uma vez que o algoz não brinca em serviço e executa com maestria o seu ofício de matar.

Portanto, àqueles que a guerra vem massacrando resta agora somente castigo ainda maior pelo pecado de terem sobrevivido. A eles, que tiveram a petulância de não morrer, lhes foi concedido como prêmio o extermínio pela fome.

Gente que perdeu família, bens móveis e imóveis, às vezes parte do corpo, da alma... gente que, mesmo assim, carrega um coração batendo teimoso e cheio de fúria também, e que não compreende os caprichos da vida e o porquê de tamanha insanidade, estende agora seu olhar perdido para o firmamento como a pedir respostas que não virão. Talvez mais bombas venham de lá.

A mente desse povo certamente o sonho não habita mais. Não o sonho de paz, de uma vida justa. O sonho de arrancar, com as próprias mãos, as vísceras do inimigo, talvez este sim tenha feito morada ali, e difícil será demovê-lo da ideia de vingança.

Claro que de tanto ouvir falar daquela tragédia, o mundo acabou por se acostumar, assim como tem se acostumado com tantas outras através dos tempos, desde que o homo se assumiu sapiens. 

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. 

É professor e autor do blog cafeecronicas.com.




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