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Segunda-Feira, 29 de Abril de 2024

Entrevista da Semana
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Entrevista da semana
‘Precisamos conversar com os jovens’

Um dos ícones da cultura hip-hop no Brasil, o dançarino, compositor, coreógrafo e ativista cultural Nelson Triunfo Nelson relembra a sua via ao Diário

Renan Soares
18/03/2024 | 08:49
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FOTO: Nario Barbosa/DGABC


Um dos ícones da cultura hip-hop no Brasil, o dançarino, compositor, coreógrafo e ativista cultural Nelson Triunfo foi homenageado pela escola de samba Vai-Vai no Carnaval deste ano. Sua história se confunde com a disseminação do hip-hop no País, sendo um dos pioneiros do breaking e um incansável defensor da cultura nas periferias. Ao Diário, Nelson relembra a vida, passando da cidade natal, Triunfo, em Pernambuco, para as oficinas na Estação São Bento, na Capital paulista, além da criação da Casa do Hip-Hop, em Diadema, em 1999. Ele também defende o hip-hop como ferramenta de educação para os jovens. 

Nome: Nelson Gonçalves Campos Filho
Idade: 69 anos
Local de nascimento: Triunfo, Pernambuco, e mora em São Paulo
Formação: Ensino médio
Hobby: Dançar, basquete e viajar
Local predileto: Periferias
Livro que recomenda: Do Sertão ao Hip-Hop, de Gilberto Yoshinaga
Artista que marcou sua vida: Luiz Gonzaga e James Brown
Profissão: Dançarino e ativista cultural

Como foi o início de sua vida e o que o levou a se interessar pelo hip-hop?

Eu sou uma mistura de muitas raças, mas me considero mais negro do que tudo. Minha mãe era caboclo e meu pai tinha ascendência portuguesa. Nasci nas serras de Pernambuco, em Triunfo. Meu pai era um pequeno agricultor e também comerciante, e minha formação de vida foi entre o sítio e a cidade. Sempre fui um moleque muito esperto. Eu era bom de enxada. Com 10 anos, fazia minhas próprias roças e tudo. Até já vendia mamona e estudava. Na minha cidade tinha um cinema chamado Cine Guarani e, nos anos 1960, era molequinho e gostava muito de assistir a filmes ali. Foi onde tive a minha grande noção de começar a dançar, porque, na época, passavam muitos musicais com Carmen Miranda e Sammy Davis Jr. Saí com 16 anos, fui estudar em Paulo Afonso, na Bahia. Comecei a cursar o segundo ano do ginásio em Paulo Afonso. Rapidamente virei líder do colégio, E pela primeira vez comecei a deixar o cabelo crescer. Na minha cidade meu pai não deixava. Aí conheci o som do James Brown. Mais uma coisa que veio a acrescentar na minha vida. Estava começando o Black Rio naquela época, fui dançar com amigos em um local chamado Clube Operário de Paulo Afonso. Todo mundo parou para ver. Tinha uma senhora do lado de fora e ela me acompanhou. “Meu filho, eu queria conhecer vocês, achei lindo, vocês são demais. Qual é o nome do grupo de vocês?” Aí eu improvisei e já falei: o nome é ‘Os Invertebrados’. Ali formei o primeiro grupo de dança.

Como foram os caminhos até chegar em Diadema?

No final de 1974, fui estudar em Brasília. Um dos caras do grupo morava em Ceilândia. Trabalhei muito em Brasília, mas quase não tinha tempo para nada. Levantava de manhã, ia trabalhar e, quando voltava à noite, ia para a escola. Diversas vezes estava com muita fome e seguia direto de ônibus para a escola, pois não dava tempo de ir para casa. Nos finais de semana, aproveitava. O que eu realmente queria era o mundo artístico. Fui para São Paulo no final do ano. Meu irmão morava no Bixiga, na Bela Vista. Ele me recebeu, e foi assim que na época pude ficar sem trabalhar, pois ele estava bem empregado. No meu primeiro grupo, lá pelo início dos anos 1970, Tony Tornado veio falar comigo, até em inglês, pensando que eu era um gringo com aquele cabelão. Me apelidaram de ‘homem árvore’ naquela época, mas eu disse que precisava de um nome mais artístico. Foi aí que pensei na minha cidade, Triunfo. Foi quando criei o Nelson Triunfo e formei o grupo Funk Cia, em São Paulo, que foi um dos grupos que fizeram mais sucesso na época. No início de 1983, reuni todo mundo e levei para o Centro de São Paulo. Começamos a dançar em vários lugares: na Sé, na República e na Paulista. O primeiro lugar onde dançamos foi na frente do Theatro Municipal. Tivemos um problema sério porque os guardas municipais vieram e disseram que não podíamos dançar ali. Em 1984, já tínhamos um ponto, na esquina da Rua 24 de Maio. Eu ia parar na delegacia. Chegava lá e tinha um delegado que já me conhecia. Quando ele me olhava, dizia: “Rapaz, você de novo aqui?”. Eu respondia: “Doutor, eu não gosto de vir aqui, são os homens que me trazem”. E ele mandava eu ir embora. Eu dei uma pausa na dança no final de 1983 e fui para Triunfo descansar. Quando voltei, os caras já não estavam mais na rua. Estavam na São Bento. Era 1985. A partir da São Bento, as coisas explodiram. Já existiam grupos vindos de outros lugares, por causa da televisão, pois naquela época ainda não tínhamos celular. Você fazia algo na televisão e todo mundo via. Fui para Diadema na década de 1990.

Qual foi o papel de Diadema em sua trajetória e como a cidade influenciou a sua visão do hip-hop?

Eu e meu pessoal fomos os primeiros a chegar em Diadema. Desenvolvemos um sistema de oficinas que chamamos de multiplicadores. Diadema, quando chegamos lá, era reconhecida como a cidade mais violenta de São Paulo. Tinha toque de recolher, não podia abrir o centro cultural. A cidade tinha fama ruim, mas fomos crescendo. A casa do hip-hop em Diadema era chamada de Centro Cultural Canhema. Brigamos até 1999 para que eles cedessem à ideia de fazer a Casa do Hip-Hop. O Grande ABC todo abraçou a ideia. Vieram pessoas de todo lugar do Brasil para ver o que estávamos fazendo. Isso foi o embrião dos trabalhos sociais no Brasil. Hoje, nos Sescs, nos CEUs (Centros Educacionais Unificados), tem muita gente empregada, dando aula em ONGs (Organizações Não Governamentais). Temos milhares de dançarinos e grafiteiros e muitos se inspiraram em Diadema. A Casa do Hip-Hop de Diadema é conhecida como a ‘a casa do Hip-Hop da América Latina’ e a primeira do Brasil. E nós já tínhamos essa ligação com a educação, o que foi uma das melhores coisas que desenvolvemos. Trabalhar dentro das escolas sempre teve desafios. Tive muito trabalho para que entendessem a diversidade cultural, o quanto é grande e importante, não só o hip-hop, mas também o samba. A Vai-Vai fez um enredo que prestigiou o hip-hop. Havia muito preconceito com determinados tipos de dança, de música, e até mesmo em relação à homossexualidade. No início, o grupo que formei na Casa do Hip-Hop era composto por mulheres, foi um trabalho maravilhoso. Hoje, meu filho, Jean Triunfo, comanda lá.

Como a Casa do Hip Hop impactou a comunidade local e como contribuiu para a disseminação da cultura hip-hop no Brasil?

Na verdade, em Diadema foi ao contrário. Influenciei de certa forma o hip-hop lá e os moleques que surgiram lá. Eles foram um resultado das oficinas culturais e muitos se deram bem por mérito próprio. Aqueles que não seguiram o hip-hop hoje são engenheiros, doutores, professores e psicólogos. Diadema foi o grande embrião no Brasil. Quando fui para lá, já era hip-hop, mas aprendi com os alunos. Muitas pessoas subestimavam e falavam que eram jovens carentes, mas muitos se formaram, inclusive em educação física, e hoje são professores. Nesses eventos dos anos 1990 e 2000, vinham vários ônibus de todas as cidades do Interior de São Paulo. Hoje, só no Estado de São Paulo, existem mais de 50 casas de hip-hop. Aqueles moleques que nos prestigiavam na época, hoje são professores, diretores dessas casas, são os fundadores delas. Isso já é outro legado. Temos jovens que hoje estão no exterior, falando dez idiomas, dançando no Circo de Soleil, vivendo em Nova Iorque, Berlim, Coreia e Dinamarca. O que era considerado moda, coisa de moleque, de favelado, sem futuro, completou 50 anos de mudança. 

Como o sr. vê o seu legado no futuro?

Considero-me um grande compositor e músico, e agora quero trabalhar mais nesse meu lado musical. Estou gravando coisas boas, mas não vou deixar de dançar. Dançar sempre um pouquinho para não parar, senão o corpo enferruja, né? Mas essa coisa de ser professor, de trabalhar com educação e tudo isso está em mim desde cedo, desde Paulo Afonso, isso é a minha vida. Ser um educador social, um ativista. Deixei de ganhar muito dinheiro por ser ativista, por não me vender. Não me considero melhor do que ninguém, mas me considero o maior underground do Brasil. Desde que comecei minha carreira artística, estou sempre na mídia. Agora, o que eu quero é focar no lado musical. Acho que já cumpri uma missão. Não vou parar, mas deixar a molecada brincar. O hip-hop, nessa luta pelo social, pela justiça, continua. Isso me faz viver, ser Nelson Triunfo, mais ativista do que artista. Acredito que o futuro do hip-hop está traçado na mudança por meio da educação. Precisamos conversar com os jovens para que entendam que a vida não é apenas uma brincadeira ou um papel descartável. Precisamos incentivá-los a se sentirem felizes dentro da escola e terem atividades que os atraiam. Mostrar para o jovem periférico no que ele mais se identifica e, a partir disso, posso mostrar outras coisas, abrir caminhos.

Quais foram os maiores desafios que o sr. enfrentou ao longo de sua trajetória no hip-hop brasileiro?

Os principais desafios que enfrentei foram a polícia, a falta de dinheiro e o fato de o movimento cultural não ser levado a sério. Muitas pessoas tinham preconceitos. Os próprios governos não abriam espaço porque não acreditavam no hip-hop, mas hoje muitos devem bastante, pois desenvolvemos trabalhos com jovens periféricos, resgatando tantos deles. Enfrentar os obstáculos, os preconceitos, trabalhar dentro da educação, pagar aluguel, luz, água. Viver disso foi um desafio. Hoje me considero um guerreiro que deu conta do que se comprometeu a fazer, ficar feliz comigo mesmo e ser feliz com as pessoas que gostam de mim. 

Quais foram os momentos mais marcantes de sua carreira no hip-hop e por quê?

O momento mais marcante do hip-hop na minha vida foi quando levamos o movimento para as ruas. Outro momento marcante foi na Estação São Bento, quando comecei a fazer as primeiras oficinas. Passar conhecimento era tudo o que eu queria. Um outro grande momento foi a casa do hip-hop, o Centro Cultural Canhema, onde pudemos receber pessoas de outros países. E no programa do Jô Soares. Poder cantar e dançar lá foi uma abertura que não existia para artistas independentes. Uma das últimas foi a homenagem que a Vai-Vai fez ao hip-hop. Vou agradecer pelo resto da vida, por ter quebrado esse preconceito, pois muitas vezes falamos da elite que nos boicota, mas, às vezes, nós também nos boicotamos. Essa homenagem foi um grande momento da minha vida, até me emociono ao falar disso. Quando cheguei a São Paulo, em 1967, fiquei no Bixiga, e a primeira escola que me chamou para dançar foi a Vai-Vai, em 1977, quando foi vice-campeã do Carnaval paulista.




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