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Segunda-Feira, 29 de Abril de 2024

Entrevista da Semana
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Entrevista da Semana
‘Democracia é garantir os direitos das crianças’
Thainá Lana
08/01/2024 | 07:00
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FOTO: André Henriques/DGABC


Foi vivendo e trabalhando nas ruas de São Bernardo que o atual coordenador geral do Projeto Meninos e Meninas de Rua, Marco Antônio da Silva Souza, o Markinhus, 54 anos, conheceu a entidade, em 1983. 

Através da educação e da cultura, o projeto, que é referência internacional na garantia e promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes, ajudou a mudar a história de vida de Markinhus e de tantos outros meninos e meninas em situação de rua ou de extrema vulnerabilidade. 

Com 40 anos de atuação na região, a entidade luta contra ação de despejo movida pela Prefeitura. O desejo de Markinhus para este ano é que o projeto continue de portas abertas para atender à população que mais precisa. 

Raio X

Nome: Marco Antônio da Silva Souza (Markinhus)

Idade: 54 anos

Local de nascimento: São Bernardo

Formação: Ciências Sociais

Hobby: Assistir filmes

Local predileto: Riacho Grande

Livro que recomenda: História das Crianças no Brasil – Mary Del Priore

Personalidade que marcou sua vida: Mikhail Bakunin

Profissão: Coordenador 

Onde trabalha: Projeto Meninos e Meninas de Rua

Qual a sua relação com o Projeto Meninos e Meninas de Rua? Como sua história se encontrou com a da entidade? 

Vem desde o início. Conheci o projeto vivendo nas ruas de São Bernardo, trabalhava no Centro, engraxando sapatos, quando um grupo de educadores, em 1983, foi conhecer as crianças que ocupavam esses espaços e eu era um desses jovens. A história do projeto me ajudou a chegar até aqui, a construir minha identidade ideológica, política e social, sempre pautada na história das pessoas que vieram antes de mim e ajudaram a organizar uma sociedade mais justa. 

O que o projeto representa para São Bernardo? 

O projeto nasce em um momento histórico, de abertura da democracia e de muita mobilização dos movimentos sociais. Fomos a primeira experiência no Grande ABC a fazer um trabalho de educação aberta com as crianças, focado no atendimento alternativo e mais comunitário, sempre com apoio popular. O projeto representa uma nova metodologia de olhar o cenário do público infantil, não culpabilizando suas famílias pela situação de vulnerabilidade, mas compreendendo um contexto mais amplo, sócio-histórico e cultural do próprio País. Na década de 1980, a política oficial era do bem-estar do menor, executado pela antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo). Hoje, essa metodologia alternativa está presente nas políticas públicas nacionais, estaduais e municipais. Esse processo, que chamamos de política pedagógica, está muito ligado à teoria de Paulo Freire, importante pensador e patrono da educação brasileira. Democracia e justiça social é garantir os direitos das crianças. 

Qual a contribuição do projeto para a proteção e promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes, não somente para o município de São Bernardo, mas também para o País?

O PMMR é fundador do Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua, coletivo protagonista no período pró-Constituinte e depois no pré-estatuto, que mobilizou a sociedade brasileira para implementação de artigos relacionados aos direitos das crianças na Constituição Federal de 1988, e também atuou na pressão popular para aprovação e criação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), em 1990. Tudo que reorganiza os serviços e as instituições que atuam com crianças, estatais e organizações da sociedade civil, se moldaram a partir desse novo paradigma, a proteção integral da criança e do adolescente, aí está a contribuição do PMMR. Além dos grandes temas, também contribuímos no combate à violência contra as crianças e adolescentes em São Bernardo, com denúncias contra o extermínio dessa população em situação de rua, na década de 1980. Isso gerou uma CPI (Comissão parlamentar de inquérito) e muita repercussão nacional e até internacional. Nos organizamos e protegemos muitas vidas que estavam sendo ameaçadas de morte. Ajudamos ainda a fundar o Fórum dos Direitos Humanos das Crianças e dos Adolescentes, que coletou assinaturas das melhores propostas que integraram a Constituição Estadual de São Paulo. Após pressão do projeto, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) criou o Provita-SP (Programa Estadual de Proteção a Vítimas e Testemunhas) e a primeira pessoa a participar foi uma criança do município, vítima de uma ação violenta, que sobreviveu e virou testemunha ocular do crime. Essas são apenas algumas das lutas que o Projeto Meninos e Meninas de Rua protagonizou ao longo dos 40 anos de história.

Qual o perfil das famílias atendidas pelo projeto? 

São famílias que moram, em geral, na periferia de São Bernardo, possuem baixa escolaridade e são trabalhadores informais. A maioria das famílias é chefiada por mulheres, e, em torno de 70%, ou até mais, são negras. No total, são atendidas cerca de 1.000 famílias, de forma direta ou indireta. Como o projeto não é apenas de atendimento, mas tem também um aspecto comunitário e popular, com atividades socioculturais, diversas gerações já passaram pela entidade. O bloco Eureka é um exemplo, onde os pais participaram quando crianças e hoje levam seus filhos. Aqui é um espaço aberto para toda comunidade, que visa contribuir com apoio socioeconômico, mas também para construção e fortalecimento da cidadania. 

Como está o processo de despejo do projeto? 

O projeto usa o espaço localizado na Rua Jurubatuba, número 1.610, desde 1989, com respaldo do decreto publicado em 1992. Alguma coisa nesse caminho aconteceu, que terminamos perdendo a permissão de uso, retirada em 2018 pela Prefeitura de São Bernardo. Fizemos várias campanhas de permanência, inclusive com apoio de artistas, políticos e movimentos sociais. No início de dezembro houve uma movimentação por parte da administração são-bernardense solicitando a reintegração de posse do espaço, mas ainda cabe recurso. Sobre o despejo, entendo que estamos em um momento de pensar na possibilidade de trabalharmos juntos para chegarmos a um bom entendimento com a Prefeitura e com o Judiciário para conseguir manter o projeto. Fechar as portas dos meninos de rua é invisibilizar essa população. O projeto é referência para a periferia e para as ruas de São Bernardo.

Nesse período, quais ações e quais pessoas o projeto procurou para tentar reverter a situação de despejo? 

Diante da ação do despejo fizemos uma procura primeiro pelas organizações sociais que atuam na região e conhecem o trabalho da entidade. Depois pedimos apoio da classe política, achamos importante que os políticos se posicionem e ajudem a tentar reverter a situação. Por fim, chegamos à classe artística e tivemos apoio de diversas personalidades, como Emicida, Chico Buarque, Leci Brandão, entre outros. Somente em 2023 tivemos a visita na sede de dois ministros, Luiz Marinho, do Ministério do Trabalho, e Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e da Cidadania. 

Durante o processo de despejo, que ocorre desde 2018, houve diálogo com a Prefeitura? Senão, por qual motivo? 

Tiveram alguns diálogos no começo do processo. Porém, em 2023, infelizmente não houve mais conversa, gostaríamos muito de continuar dialogando para achar uma saída boa para a cidade e para o projeto, mas, principalmente, para todos os atendidos pela entidade. Não existe perdedor ou vencedor na ação de despejo, não é uma partida de futebol. Queremos dialogar com a Prefeitura.


Na sua opinião, por qual motivo o prefeito Orlando Morando (PSDB) está reivindicando o espaço? É realmente por conta de irregularidades no TCE-SP (Tribunal de Contas do Estado de São Paulo), ou acredita que seja algo pessoal? 

Não acho que seja exclusivamente pela questão das irregularidades, e também não acho que seja algo pessoal. Acredito que as informações que chegaram até o prefeito não estavam colocadas de maneira correta. Por exemplo, uma das alegações é que o espaço não estava oferecendo atividades, que estava fechado. Passamos por um período de dois anos de pandemia, e ficamos muito tempo sem apoio municipal, realmente nossas atividades foram reduzidas, mas nunca foram interrompidas. Para nós, é importante ele (o prefeito) tentar resolver, e temos toda vontade de achar uma saída importante para manter as portas abertas nesse espaço, que é uma referência, um quilombo urbano e um centro popular de direitos humanos para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, em especial para esse público em situação de rua.

Nos últimos meses, a Prefeitura aderiu a diversos programas, como o Cidades Antirracistas do Ministério Público, e criou algumas medidas para combater o racismo no município. Essas ações só ocorreram por conta da pressão da denúncia de racismo institucional realizada no MP e no Fórum da ONU (Organização das Nações Unidas)? 

Historicamente, o movimento popular é uma força motora que impulsiona o poder público para avançar em algumas políticas, iniciar outras necessárias, e para fortalecer boas práticas institucionais. Esse é o papel dos movimentos populares, e em São Bernardo não é diferente. O fórum antirracista, juntamento com outros coletivos que fizeram a denúncia, tem pautado a necessidade para a cidade, autoridades e também para sociedade são-bernardense, de olhar para algumas ações que fragilizam a população negra do município. Aderir ao programa Cidades Antirracistas é assumir um compromisso com o MP de implementar algumas políticas e serviços, que tenham como foco a população negra. Então, se fez isso, é porque São Bernardo não tinha, e para nós é um gesto importante. No meu ponto de vista, há ainda três questões importantes que devem ser resolvidas para continuarmos avançando na política antirracista no município. A primeira é um levantamento municipal da população negra e indígena da cidade. Com os dados será possível formular políticas públicas e serviços voltados a esse grupo. O segundo ponto é resolver a questão do terreiro de candomblé despejado do antigo terreno, no Jardim Silvina. Após processo de urbanização, o terreiro foi o único local que não conseguiu um novo espaço. Por fim, a reparação fundamental é abrir uma mesa de diálogo com o Projeto Meninos e Meninas de Rua para continuarmos garantindo a proteção dos direitos humanos e fortalecer a educação e a prática antirracista no município.




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