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Segunda-Feira, 29 de Abril de 2024

Entrevista da Semana
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Entrevista da Semana
‘A vida me deu limões e virei uma especialista em limonada’, diz Cleide Evelin

Moradora de São Bernardo foi destacada na lista Under 30, da Revista Forbes, que aponta pessoas que estão fazendo algo extraordinário antes dos 30 anos

Nilton Valentim
01/01/2024 | 07:00
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Levar água potável para moradores de uma das cidades mais pobres do mundo, Loropeni, em Burkina Faso, na África, é uma das referências no currículo de Cleide Evelin. Nascida na vila do Tanque, em São Bernardo, ela perdeu a mãe no parto e foi adotada pelo tio. Hoje, está à frente do Instituto Juntos Brasil, que também atua com projetos sociais em 12 comunidades, sendo sete na sua cidade natal. A vontade de mudar o mundo a colocou na lista Under 30, da Revista Forbes, que reúne personalidades com menos de 30 anos que se destacam em suas áreas. Antes dela, nomes como Neymar, Emicida, Anitta, Endrick e Bia Haddad já elencaram a publicação.

Quem é Cleide Evelin? Qual é a sua trajetória?

Eu nasci em São Bernardo, na comunidade de Ferrazópolis, na vila do Tanque. Uma vida muito simples. Eu perdi minha mãe no meu parto. Então, eu até brinco que a vida me deu muitos limões, ela só não contava que eu me tornaria uma pessoa especialista em limonada. E meu pai não soube lidar com luto, fui deixada para a adoção e o irmão do meu pai me adotou. Então eu aprendi a chamá-los de pai e mãe e eles me ensinaram que a minha vida foi resgatada. Então eu poderia também resgatar outras histórias. A gente veio de uma família muito simples, mas eu aprendi que a educação poderia mudar muito as coisas. Eu fui a primeira pessoa de uma família inteira a fazer uma graduação e passei em primeiro lugar em vestibular na Metodista. Fiz marketing, estudei música um pouco antes. Eu foquei em estudar para mudar essa a história que a gente tinha tido até ali. Eu atuava como musicista, compunha para teatro musical e tudo mais. E, em 2015, eu sofri um acidente, perdi o movimento da mão esquerda. E quando eu achei que na verdade a vida teria parado, foi quando ela realmente começou a acontecer e eu comecei a desenvolver projetos, que era a minha pós em gestão de projetos, e eu fui para Brasília, Maranhão, Rondônia Acre Bolívia, Argentina Paraguai, até que em 2018 eu escrevi um projeto chamado Água é Para Todos, que em 2019 levou água para Burkina Faso, no Sul do deserto do Saara, um dos países mais pobres do mundo. Eu consegui apoio diplomático com o governo de Burkina Faso com apenas 24 anos de idade. Foi um dos primeiros acordos diplomáticos registrados. Lá atendemos hoje 1.500 pessoas e existem 22 hortas construídas das 25 que deixamos. Levamos segurança alimentar e acesso a água potável. E e aí, voltando para o Brasil, eu falei ‘eu posso resgatar a história dos meus também, sabe’. E aí nesse processo nasce o Instituto Juntos Brasil, que é uma organização fundada logo depois, em 2020, no meio da pandemia. Por ela nós deixamos bases educacionais dentro das comunidades. Então já são sete comunidades em São Bernardo, de um total de dez em São Paulo, e duas em Brasília. Nessas 12 comunidades hoje são 3.500 pessoas sendo abastecidas por uma pessoa que começou lá na Vila do Tanque, sem perspectiva nenhuma e que hoje chegou Under 30 da (revista) Forbes.

Como se desenvolvem esses projetos?

A gente opera dentro das comunidades. Muitas delas são comunidades onde eu cresci, tive amigos e convivi com pessoas de lá. Hoje eu vou, faço o mapeamento da comunidade, a gente levanta as principais necessidades. E aí, com as empresas parceiras, a gente consegue manter essa comunidade de forma autossustentável. Tem, por exemplo, a loja que é a Juntos Store. A gente viu que com o avanço da tecnologia as costureiras ficavam para trás. E com isso a gente criou uma rede entre elas. Trazemos tecidos da África, gerando trabalho e renda lá, e aí quando os tecidos chegam aqui a gente contrata as costureiras, remunera de forma digna, e esse produto vai para um e-commerce. Nós não vendemos produtos, nós compartilhamos propósitos. E metade do lucro é revertido para transformação social. Então, 50% ficam para manter a roda girando, para trazer mais tecidos, gerar empregos, e os outros 50% para manter o projeto.

Então hoje vocês conseguem juntar pessoas de comunidades africanas e brasileiras em um único projeto?

Sim. Vem um tecido que a mulher lavou e tingiu lá nos tanques de Burkina Faso. E aí quando chega aqui esse tecido se transforma numa camiseta, o retalho dele vira um colar, um turbante ou um brinco. A gente reaproveita absolutamente tudo. A gente tem dois programas, um é o Água é Para Todos, que acontece exclusivamente na África, e tem o Ruas, em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. E aí a gente tem também o Juntos School, que focado na educação. Captamos escolas técnicas e universidades e pegamos os cursos gratuitos ou bolsas e a gente coloca tudo dentro de um sistema, que é o Juntos School e as escolas públicas. A gente leva isso de forma gratuita para as escolas públicas. E aí todos os alunos têm acesso a capacitação técnica e, com a parceria do Campi-SBC (Centro de Aprendizado e Melhora Profissional de São Bernardo), a gente consegue mandar esse jovem também para inserção no mercado de trabalho. E só em em 2023 foram 1.544 alunos.

E como funciona na prática o Águas é Para Todos?

Foram 42 dias no deserto do Saara. O projeto levou dez meses para ser executado, desde o planejamento, a execução e o fechamento. A gente fez uma campanha de financiamento coletivo. Nós precisávamos de R$ 21 mil para fazer um poço, que é um valor simples para gente, mas para eles são milhões de Francos CFA, já que R$ 6 equivalem a 1.000 Francos CFA. Conseguimos 72 doadores. E aí levantamos o recurso necessário e, no final, chegamos a R$ 35 mil, contando R$ 24 mil e em dinheiro e o restante em doações, como calçados, toucas de proteção solar, lenços para as mulheres. A gente levou bastante coisa, só que Burkina Faso é um país pacífico no meio de vários países em guerra e que tinha acabado de passar por um golpe de estado. Por isso a gente precisou de apoio diplomático para entrar, porque se acontecesse qualquer coisa a gente teria segurança de voltar para o Brasil. Mas o projeto foi lindo.

A meta era abrir poços?

É isso. Nós contratamos uma empresa, por isso os R$ 21 mil, que ficava na capital, que é Uagadugu. E aí essa empresa viajou até Loropeni, que na época era a terceira cidade mais pobre do mundo. Bukina Faso tinha tinha 0,01% de água potável per capita, que daria 200 ml por dia, mas em Loropeni as pessoas não sabiam o que era água potável. Então, nem essa mínima era atingível. E nós conseguimos. Cavamos a 110 metros abaixo do solo até atingir lençol freático, que é onde passa a linha do oceano. Então, enquanto tiver mar, eles vão ter água potável. E, além disso, a gente calçou os pés das crianças, levamos atendimentos médicos, construímos 25 hortas, formamos 25 agrônomos e aí com o laissez-passer (passaporte diplomático) a gente pôde levar sementes também do Brasil para Burkina. E aí plantamos alface, tomate, rabanete, couve, alho-poró… Que eram coisas que eles não tinham hábito de consumir. Lá eles comiam arroz, tô – que é como se fosse um angu de milho branco – e bolinho de alpiste. Então era a base da nutricional deles era isso e aí a gente chega com cenoura, rabanete, alho-poró, couve, alface… Então, a gente conseguiu levar uma melhor qualidade de vida e segurança alimentar para eles também.

E como é para você estar na lista das pessoas mais influentes do País com menos de 30 anos?

Confesso que eu não esperava. Por mais que eu olhasse assim e falasse ‘ acho que eu tenho potencial para estar lá. Eu tenho feito coisas bacanas’. Mas receber a mensagem ‘você entrou para a lista das principais lideranças’ é uma afirmação de que você está no caminho certo, de que o que você fez até aqui é bom e que as pessoas que virão depois de você poderão fazer igual ou ainda melhor. Além do título, é o que ele representa. É como as pessoas vão olhar. É como elas vão se ver. O povo vai ver uma menina preta, da periferia de São Bernardo e falar ‘cara, ela nasceu aqui do lado, na rua de baixo. Se ela fez eu posso’. É exatamente trazer essa certeza de que nós podemos. No fundo, é questão de ser exemplo.

Você tem pretensões de mudar o mundo?

Seria uma utopia, né? Mas eu tenho. E eu acredito que mudar o mundo parte de mudar o nosso mundo primeiro. Se a sua vida impactar outra vida, com certeza ela vai impactar outra, e outra... Eu acho que assim a gente consegue uma grande escala de transformação. Hoje a gente, através de uma ideia que começou na minha cabeça, que é o Instituto Juntos Brasil, já pôde impactar mais de 5.500 histórias. Ainda não é mudar o mundo, mas se cada uma dessas 5.500 pessoas alcançarem mais uma, eu acho que a gente já conseguiu fazer muita coisa pelo mundo.

Baseado no título do livro que você acaba de lançar, Quando é que o simples parece extraordinário?

O tempo inteiro. Essa reflexão vem da observação, de olhar para as coisas simples que eu não tive e pensado, como elas teriam sido extraordinárias. Igual ter tido, por exemplo, o colo da minha mãe quando eu nasci. É tão simples, mas eu não tive. Então, para mim teria sido extraordinário. Talvez ter tido um pouco mais de acesso, um pouco mais de referência. O livro é uma autobiografia, focada na observação das coisas.

Na primeira pergunta dessa entrevista você fala em ‘ressignificar a história dos meus’. Quem são os seus?

São as pessoas que eu não via nos jornais quando era mais nova. São pessoas que estavam lá nas comunidades. Eu não tive essa referência. Escrevendo o livro eu fui buscar um pouco da minha história e eu descobri que eu sou bisneta de um escravo alforriado e a minha avó tem no documento dela um Ventre Livre (lei de 28 de setembro de 1871, precursora da Lei Áurea, que determinava que as mulheres escravizadas dariam à luz bebês livres). E se a gente parar para pensar, a escravidão não está tão longe assim não. Eu fui a primeira mulher a ter uma graduação da minha família e a primeira a sair do País. Da minha cidade, fui a primeira mulher entrar na lista da Forbes. Então, resgatar os meus é trazer para eles essa a certeza de que talvez antes a gente não teria chegado, mas a partir de agora é possível. É abrir caminhos, fazer o inédito. Fazer o que antes não não foi feito é uma maneira de resgatar os meus e de falar que é possível. Eu não quero ser a única. Eu quero ser a primeira. E virão muitos outros. 

O que você projeta para esse ano que está começando?

Eu tenho algumas metas pessoais e institucionais. A gente gostaria muito de ter uma base para o Juntos, para abraçar as comunidades.Ser um ponto de encontro. A gente idealizou muitas coisas e agora chegou a fase de concretizar tudo isso eu acredito que 2024 nos reserva essa concretização. No pessoal, acho que é continuar sendo resposta. Continuar tendo um ânimo de acordar todo dia e falar ‘bora fazer mais um pouquinho que ainda dá jeito, ainda dá para fazer’.E voltar para África. Depois da Covid a gente não pôde voltar para Burkina. Lá nem todas as pessoas conseguiram ser vacinadas, infelizmente. Não tem como acondicionar as vacinas e fazer com que chegue até os lugares mais longínquos e as pessoas não têm condição de ir até a capital então para Burkina, a gente sabe que ainda não vai dar para voltar, mas a gente já tem dois países da África mapeados, Moçambique ou Angola, que são países de língua portuguesa.

RAIO X

Nome: Cleide Evelin.

Idade: 29 anos.

Local de nascimento: São Bernardo

Formação: Música e marketing, com especialização em gestão de projetos e marketing estratégico.

Hobby: Música, qualquer coisa que faça barulho.

Local predileto: Minha casa e a África.

Livro que recomenda: Quando o Simples se Torna Extraordinário, de Cleide Evelin.

Personalidade que marcou sua vida: Jesus Cristo.




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