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Domingo, 28 de Abril de 2024

Vício Regional
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Vício Regional
Combate às drogas necessita ir além da repressão a usuário, dizem especialistas

Para estudiosos, questão deve ser reconhecida como problema de saúde pública, não apenas de segurança; ações multidisciplinares fazem parte da solução

Renan Soares
Do Diário do Grande ABC
Thainá Lana
Do Diário do Grande ABC
30/07/2023 | 11:15
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Especialistas argumentam sobre o combate às drogas, presente na região (FOTO: Celso Luiz/DGABC)


A última reportagem da série ‘Vício Regional’, publicada durante o mês de julho no Diário, e que abordou o universo das drogas no Grande ABC, traz as possíveis soluções apontadas por especialistas para tentar sanar o problema social que atinge não somente a região como a outros locais do mundo. Clique aqui para ler as demais reportagens

A ocupação de espaços públicos por usuários de drogas e o uso excessivo de substâncias psicoativas são resultados de políticas públicas inexistentes, e de abordagens repressivas que, segundo quem entende, não ajudam a resolver o problema que se arrasta por décadas. 

Eles destacam a complexidade da situação, e acreditam na implantação de medidas emergenciais e de políticas públicas de Estado, não apenas de gestão, que foquem nas demandas dos indivíduos e não na criminalização dos usuários.

Para isso, os entrevistados afirmam que o uso de drogas não é apenas uma questão de segurança, e precisa ser reconhecido como um problema de saúde pública. Com abordagens humanizadas e não repreensivas, as ações devem ser trabalhadas de maneira integrada com diferentes áreas, como habitação e trabalho e renda, por exemplo, para promover a autonomia e a efetiva integração dessas pessoas na sociedade.

HABITAÇÃO

“Nenhuma medida vai ser suficiente se não enfrentar a questão da droga de outra forma, a partir da lógica do usuário. Cada indivíduo possui demandas específicas, que passam por diversas áreas, como moradia, saúde e trabalho, por exemplo. A habitação é central, principalmente para os usuários que também estão em situação de rua. É importante lembrar que o Brasil não tem um histórico de distribuição de terra, e nem de política habitacional, que dê conta de toda a demanda da sociedade. O País é marcado, prioritariamente, pela autoconstrução, pelos esforços das pessoas que ocuparam e construíram suas moradias. Então a presença da população em situação de rua é resultado dessa política habitacional inexistente, não única e exclusivamente de escolhas individuais. Precisamos fugir da lógica de abrigos e pensar em uma política habitacional mais ampla e definitiva, não apenas emergencial, que não supera os desafios. Se o indivíduo não tem onde ficar, onde morar, onde guardar suas coisas, sua saúde mental fica debilitada. Habitação é também parte essencial do cuidado, também é um problema de saúde.”

Aluízio Marino

Coordenador do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo)

SOCIAL

“As abordagens precisam ser de maneira integrada. Há de se fazer necessariamente um trabalho intersetorial, ou seja, passando por distintos setores, envolvendo obviamente segurança pública e políticas de saúde, mas também de assistência e desenvolvimento social. É muito importante que a oferta de cuidado às pessoas que apresentam quadros de dependência química esteja seguindo as reais necessidades dos indivíduos. Em algumas situações, infelizmente, a oferta de cuidado não obedece às demandas do usuário. É importante que o tratamento e o cuidado de assistência sejam customizados para cada indivíduo, e é só dessa maneira que nós vamos atingir cada vez maior efetividade no processo de recuperação da pessoa com dependência química. Nós temos nos preocupado cada vez mais em atuarmos para garantir que, quando essas pessoas saírem da internação, haja um suporte assistencial, para ajudar o indivíduo a viver uma vida autônoma e de reaproximação com a família. A internação é importante, sem dúvida alguma, mas é um processo inicial de tratamento, e precisa ser seguido depois de outras tantas etapas como essas.”

Quirino Cordeiro

Psiquiatra e diretor do Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas do Estado

SEGURANÇA

“A mera dispersão dos usuários de drogas pela força não é medida inteligente e tampouco eficaz, pois não diminui e muito menos extingue o problema, apenas o torna invisível aos olhos dos habitantes, trazendo-lhes uma falsa sensação de normalidade. Experiência recente na Capital demonstrou que a intervenção policial teve como alvo preferencial os usuários problemáticos de drogas que habitam esses locais públicos. A imputação criminal contra eles, com prisões, indiciamentos e denúncias, no geral, veio sustentada na alegada posse de ínfimas quantidades de drogas e, em muitos casos, de meros resquícios corporais dessas substâncias. Para uma questão tão complexa, a experiência mostra isso há décadas, não existe estratégia de intervenção com efeitos imediatos e integralmente eficazes, como reclamam alguns. O tratamento deve ser multidisciplinar (ainda que não se abdique da atuação policial) e com a consciência de que os resultados demandam tempo e persistência. A primeira preocupação não deve ser urbanística ou jurídica, mas sim médica. A polícia como porta de entrada compulsória para atendimento médico não funcionou e jamais funcionará.”

Édson Luís Baldan

Ex-delegado e professor doutor de direito penal e criminologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

SAÚDE

“O tratamento baseado só na medicação é ineficaz. Tiramos as pessoas do ambiente delas e, quando retornam para a realidade, voltam a fazer o uso. Temos no Brasil o que chamamos de Rede de Atenção Psicossocial. São vários serviços que oferecem atendimento para as pessoas que fazem uso de substâncias. Existem os CAPSs (Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas), que fornecem tratamento psicossocial com equipes interdisciplinares, psicólogo, terapeuta ocupacional, assistente social, enfermeiro, médico, técnicos de enfermagem, oficineiros. O que precisamos para garantir o cuidado das pessoas está na integralidade. Isso já exclui as internações de longa duração onde as questões psicossociais não são trabalhadas. O que vemos ter eficácia é o cuidado interdisciplinar, oferecido na Rede de Atenção Social. O que precisamos hoje? Aumentar a cobertura do CAPS Álcool e Drogas, principalmente do tipo três, que funciona 24h, além de investir nos CAPS infantojuvenis, porque as pessoas cada vez mais experimentam a droga mais cedo. Seria investir naquilo que já temos, mas que talvez não esteja acessível a toda a população.”

Heloísa Garcia Claro

Professora na faculdade de enfermagem da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)

TRABALHO

“No Brasil, foi construído ao longo dos anos um imaginário social sobre a ideia de repreensão e violência institucional. Isso ocorreu na passagem da escravidão para o trabalho livre, onde havia uma necessidade de firmar que aquela massa de pessoas na rua, sem trabalho, sem terra e sem dinheiro, eram pessoas perigosas. A partir disso, essa narrativa foi sendo atualizada para outros grupos, em uma escala mundial, inclusive para a guerra às drogas, que, na verdade, é guerra aos usuários pobres. O Programa de Braços Abertos, da Prefeitura da Capital, foi a política pública que mais se aproximou de produzir resultados, incluível na área da segurança. A ação tinha como ponto central a saúde mental, sem isso não se resolve a questão da dependência, e trabalhava com diferentes abordagens, como assistência social, direitos humanos, habitação, entre outros campos. Existia uma preocupação real de integrar esses sujeitos à vida social a partir do trabalho. O que vai permitir que a pessoa volte a ter uma função social é a força de trabalho, que vai possibilitar que esses indivíduos tenham autonomia.” 

Alessandra Teixeira

Professora de políticas públicas da UFABC (Universidade Federal do ABC)

A descriminalização das drogas

Além de abordagens humanizadas e trabalho multidisciplinar, os especialistas apontaram a descriminalização das drogas como um dos principais caminhos para combater as cenas de uso de substâncias e diminuir a violência institucional contra usuários pobres. 

Para o Coordenador do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), Aluízio Marino,  a guerra às drogas, como é conhecida mundialmente a campanha de proibição de drogas, é uma ferramenta utilizada para criminalizar, principalmente, a população preta e pobre. 

“Essa política retroalimenta o racismo brasileiro, que é extremamente violento. A proibição é, na verdade, um controle de corpos e territórios. O consumo de drogas não ocorre somente nas cenas de uso de crack, mas também em espaços ocupados pela elite brasileira. Então, ou a gente lida com essa questão por outra ótica, ou iremos continuar em uma guerra às drogas fracassada e mentirosa”, esclarece Marino.

A docente de políticas públicas da UFABC (Universidade Federal do ABC), Alessandra Teixeira, pontua que a criminalização das drogas mobiliza o tráfico, e a comercialização das substâncias dificulta o enfrentamento do problema na ponta final, que é o usuário que vive em situação de vulnerabilidade nas vias públicas. 

“É preciso entender a dependência química a partir de uma complexidade. Se falamos que é um problema de saúde pública, e realmente é, a criminalização só serve para agravar e gerar outros problemas, inclusive de um mercado criminal. A descriminalização não é uso indiscriminado das drogas, isso é importante entender. Quando você descriminaliza é para ser regulamentado, como já ocorre com os  psicotrópicos (substâncias químicas que age principalmente no sistema nervoso central), e uma série de medicamentos. Então a descriminalização pode impactar na comercialização, e principalmente no investimento em políticas de prevenção e ações de conscientização”, esclarece a professora.  

História

Letícia dos Santos Cesário, enfermeira especialista em saúde mental e psiquiatria, e mestranda em políticas públicas, explica que, desde o início do século passado, as legislações de drogas em diversos países seguem um direcionamento semelhante, que se relaciona principalmente à imposição de um controle internacional sobre determinadas substâncias que são consideradas perigosas para os indivíduos. 

Segundo a especialista, essas políticas se estruturaram ao longo do século XX tendo como alicerce comum os acordos internacionais, que sugeriam ou exigiam a adequação das políticas nacionais através da criminalização dessas substâncias. Entretanto, conforme cita ela, é percebida uma mudança no rumo dessas políticas no final do século passado, que possibilitou o crescimento de movimentos importantes para o debate sobre as drogas. 

“Atualmente, o panorama das políticas de drogas do Brasil retoma a uma política bastante repressiva, porque, apesar da descriminalização do usuário ser vigente, não há especificidade enquanto as quantidades de substâncias permitidas, o que gera, novamente, uma margem de atuação da força policial, que acaba tendo autonomia para decidir quando alguém é usuário e quando é traficante. Ainda, o uso terapêutico é permitido através de uma ação regulatória da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), o que é considerado um grande avanço, mas recebe críticas porque esbarra na questão do alto custo, que acaba restringindo o tratamento”, afirma.

Letícia acredita que vetar legalmente o consumo é técnica do Estado para conter populações específicas, não tendo como objetivo o bem do usuário. Para ela, “o proibicionismo não age contra o que é usado, mas contra quem usa”. A legalização, para a especialista, seria uma estratégia possível de regulação.




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