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Entrevista da semana
'Diferença social é o que me faz seguir trabalhando’
Caroline Garcia
do Diário do Grande ABC
18/02/2019 | 07:07
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André Henriques/DGABC


Néia Bueno ainda era estudante quando foi convidada para participar de reunião que tratava de crianças em situação de rua. Desde então, nunca mais se afastou do tema. Se formou em ciências sociais e em 2006 tornou-se coordenadora da ONG Projeto Meninos e Meninas de Rua, de São Bernardo, que realiza 150 atendimentos em dois bairros periféricos da cidade, Vila Esperança e Nova Silvina.

Em um cenário político que considera ‘desanimador’, Néia afirma que maior necessidade da ONG (Organização Não Governamental) são recursos humanos. “Não temos condição de contratar ninguém, então precisamos de voluntários.”

Como surgiu a ONG Projeto Meninos e Meninas de Rua?
O projeto nasceu no boom que teve na década de 1980, quando as organizações sociais, a Igreja e as pastorais começaram a se organizar para tentar ter uma alternativa à ditadura. A ONG surgiu dentro da Universidade Metodista, com alunos da teologia, jornalismo e comunicação. Esse grupo se reuniu e começou a fazer trabalhos de assistência ao redor da universidade, na região do Rudge Ramos, em São Bernardo, como levar lanche, conversar com os meninos e ver quais eram as necessidades. Depois, o atendimento foi para o Centro, em uma sala da Associação Comunitária, na Rua dos Vianas, onde, em 1987, aconteceu uma chacina, na qual seis meninos foram mortos. Depois disso, o trabalho sempre continuou em lugares móveis, até que, em 1992, o projeto se constitui como personalidade jurídica e se muda à sede na Rua Jurubatuba, onde está até hoje. Neste local começaram as atividades propriamente ditas e deu estruturada no atendimento. Os focos do projeto, então, ficaram nos assuntos rua, família e comunidade.

Como funciona o projeto hoje?
A situação de rua não está mais com o projeto desde 2012, quando passou a ser responsabilidade da Fundação Criança e da Prefeitura com a criação do Suas (Sistema Único de Assistência Social). Continuamos atendendo meninos em situação de rua, mas sem o compromisso com o poder público. Fazemos o trabalho na comunidade e atualmente atendemos 150 crianças na Vila Esperança e Nova Silvina, em São Bernardo.

Como se dá o atendimento?
Temos a oficina de percussão, que é ministrada na sede do projeto, o bloco de Carnaval de rua Eureca – que para nós é o ano todo, porque a oficina é justamente para o pessoal se apresentar no bloco –, as rodas de conversa com a família e crianças sobre gênero, empoderamento, questão racial e educação, além de um cursinho preparatório para vestibular e o futebol de rua. Nessa atividade, usamos a metodologia não competitiva, na qual jogam meninos e meninas juntos em três tempos. No primeiro, eles escolhem os jogadores, no segundo, se dá a partida e, no terceiro, eles discutem as brigas que aconteceram durante os dois primeiros tempos. E como são times mistos, sai muita briga, do tipo ‘ela não sabe jogar’ ou ‘ela é sapatão’. Então conversamos os porquês dessas discussões. E é a partir do futebol, de uma forma lúdica, que é possível abordar algumas questões sociais e de gênero.

Há muitos casos de meninos ou meninas que foram atendidos, cresceram e hoje voltaram para fazer parte da ONG?
Tem. Hoje, de oito educadores na ONG, só dois não passaram pelo projeto. Eles acreditam na importância do trabalho, sentiram na pele a diferença que isso fez para eles e voltaram para cá para estimular outras crianças.

Como vocês fazem para integrar também as famílias nas atividades?
As famílias das crianças que a gente atende, em sua maioria, são chefiadas pelas mães. Os homens, ou foram embora mesmo ou estão presos, então há uma importância grande de a gente fortalecer as mulheres. Por isso, nos últimos anos montamos grupos de mães para discutir questões de gênero e machismo. E as mulheres acabam trazendo as filhas, que desde cedo já começam a se empoderar e se sentir fortalecidas.

Como a senhora enxerga o direito das minorias com o governo de Jair Bolsonaro (PSL)?
É muito desanimador pensar que demoramos tanto tempo para conseguir algumas coisa e hoje está indo ralo abaixo. Acho que as pessoas não estão se dando conta do que foi eleger este governo. Foram para o extremo. Como a Damares Alves, ministra de Direitos Humanos, fala que meninos devem vestir azul e menina, rosa? É um absurdo, por exemplo, ouvir gente fazendo pouco caso sobre discutir direitos sexuais na escola. Trabalho com as pessoas mais vulneráveis e, para mim, o que mais me chocou foi ouvir de um menino de 12 anos que não estava mais indo à escola e estava ficando na rua porque os meninos da sala dele o chamavam de ‘viadinho’. Perguntei se ele tinha falado com a professora e ele disse que sim, mas que ela tinha dito para que ele se virasse com os meninos. Os colegas, então, o trancaram no banheiro da escola. Aí ele me disse: “Imagina o que fizeram comigo”. É por esse tipo de coisa que é inadmissível não fazer discussão de gênero dentro da escola. É um tipo de violência que já acontecia, mas a posição do novo governo parece que legitimou esse tipo de comportamento. Ou temos uma conversa bem séria com a população para daqui a quatro anos poder alterar essa quadro – que eu acho que é muito difícil – ou voltamos lá para a década de 1980, quando o projeto começou.

Como a ONG se mantém financeiramente?
Com recursos internacionais feitos por meio de convênio e parcerias antigas, desde o início do projeto.

Qual o gasto mensal da ONG?
O gasto real é R$ 20 mil por mês, contando água, luz e pessoal. O espaço é permissionado da Prefeitura desde 1992, então não há esse gasto. Já a verba ideal, que era o que tínhamos no passado, seria em torno de R$ 45 mil. Com esse orçamento conseguiríamos manter 12 educadores, vigias e cozinheiras. Teríamos uma boa estrutura para conseguir viabilizar mais oficinas.

A verba da ONG, então, caiu mais do que a metade. Como se deu essa perda financeira?
O convênio internacional diminuiu. Nos dois últimos governos – e nisso quero dizer o de Lula e o de Dilma –, a lógica das pessoas lá de fora era que o Brasil estava muito bem financeiramente e que não precisava de investimento, então transferiram recursos daqui para África e Haiti, que são nações historicamente mais pobres. O que é muito justo, porque estávamos realmente numa situação boa como País. E a partir de 2012, o poder público passou a assumir o trabalho com crianças em situações de rua, que era – e de certa forma ainda é –, então já não fazia sentido manter todos os convênios internacionais com verbas destinadas para isso. Fomos nos moldando às novas quantidades de recursos e hoje nosso foco é a questão cultural, que é discutir a cidadania, questões raciais e empoderamento, que para gente também é muito importante. E, de uma forma ou de outra, os meninos que estão em situação de rua acabam nos vendo como referência.

Qual é a maior necessidade do projeto atualmente?
Recursos humanos. Não temos condição financeira de contratar ninguém, então precisamos de voluntários para atividades específicas, por exemplo, para o cursinho, que oferecemos em parceira com a Uneafro. A gente consegue muito professor de humanas, grande parte é aluno da UFABC (Universidade Federal do ABC), mas não vem ninguém de exatas, que é onde o bicho pega na hora do vestibular. Já é o terceiro ano de cursinho e conseguimos, inclusive, aprovações no vestibular. É muito legal, porque é o sonho do jovem e, muitas vezes, é o primeiro da família que está fazendo faculdade. Temos também uma sala de informática boa e somente um professor, mas o ideal seria que tivéssemos mais uma pessoa para que pudéssemos formar mais turmas.

Como já citamos, a ONG também organiza um bloco de Carnaval, que desfila desde 1992 em São Bernardo. Como surgiu essa ideia?
O bloco Eureca (Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescente) surgiu por conta do fato de estar saindo de cena o Código de Menores e as pessoas precisavam ter a ciência de que o Estatuto já estava aprovado. Então, um grupo de educadores do projeto teve a ideia de apresentar para a população de forma lúdica esse conjunto de normas. Resolveram pelo bloco de Carnaval com os meninos e convidaram outras entidades para participarem também. Desde então, o Eureca nunca deixou de desfilar. Neste ano, o tema será Crianças e Jovens na Construção da Cultura e Direitos Sociais e está programado para sair no dia 1º de março.

A senhora é coordenadora da ONG desde 2006. De que forma começou a sua história com o projeto?
Eu era estudante e conhecia o coordenador do projeto, que me convidou para ir em uma reunião do Movimento Meninos e Meninas de Rua, que não tinha nada a ver com a ONG. Participei do encontro, comecei também a frequentar o projeto como voluntária e fui ficando. Acabei me encantando e me apaixonando pelos meninos. Acho que transformar o mundo é possível. Acredito na justiça social, no fato de as pessoas terem direitos. Não sou de religião nenhuma e acredito que o amor está nas pessoas. A gente vive em um País bom, cheio de recurso e o que ‘ferra’ a gente é a desigualdade. Qualquer um que andar em São Bernardo vai ver que tem pessoas que moram confortavelmente no bairro Anchieta, ao mesmo tempo em que há meninos catando lixo e fazendo malabares no farol. Essa diferença de realidade é o que me faz seguir trabalhando no que acredito.

Qual a maior conquista da ONG até agora?
Ainda temos um sonho, que é abrir uma sede no Parque São Bernardo. Segundo estudo já antigo que nós fizemos, mas que não se alterou, os meninos que vão para a rua, seja para dormir ou trabalhar, vêm majoritariamente desse bairro. Fazemos algumas atividades pontuais lá, mas nosso desejo é ficar permanentemente. Mas até agora, com certeza, a relação que construímos com a comunidade é nosso maior triunfo. O respeito que as famílias e os atendidos têm, ninguém vai tirar. Conseguimos perceber isso justamente quando as pessoas que já passaram por aqui voltam perguntando o que elas podem fazer para ajudar. Esse é o maior reconhecimento. 




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