– Ô Silva! Você tá sabendo da morte do Agenor?
– Que Agenor?
– Ué, o Agenor do bilhar. Quem mais?
– Nossa! Mas ele não era assim tão velho!
– Setenta e cinco.
– Pois é. O Dito já tem noventa e cinco e tá aí, firmão.
– É... Mas o Agenor, coitado, teve um enfarte fulminante. Desses que quando dá o nego desaba e não há o que possa ser feito.
– Gente boa aquele. E o Dito continua aí, fortão. Tá certo que de vez em quando suja as paredes do banheiro. Não sei como consegue, só sei que faz. Os filhos é quem o digam.
– Está caducando o infeliz?
– Não. Ele só esquece onde é a privada... Normal. Assim como esquece, volta e meia, de um ou outro neto. Também não faz mais a barba e para o cara tomar um banho, só na marra.
– Mas se ainda está bom de papo, por que você não traz o homem aqui no bar para uma partida?
– Porque ele não saberia distinguir um taco de bilhar de uma bola de basquete.
– Então, o sujeito já morreu, Silva. Tal qual o Agenor. A única diferença é que o velho Agenor foi enterrado e o Dito não.
– Mas por que esta conversa, agora, Haroldo? O homem respira e muito bem. Come, toma lá seus tragos e ainda fuma um cigarrinho. E tirando o fato de se esquecer, às vezes, de ir ao banheiro e mijar pernas abaixo, até que vai bem. Tá certo que de vez em quando também vê bichos pela casa... Muito natural na idade dele.
– Não conhece os netos, faz sujeira o tempo todo, vê bichos pela casa... Amigo Silva, deixe que lhe explique: um homem é a sua aparência e também a sua personalidade, meio a meio. A aparência dele é a de um velho de quase um século, bastante conhecido do pessoal do bar. Tudo bem até aí. Mas a pessoa que era, isto não é mais. Deixou de ser o bom e velho Dito. Seu corpo pode estar bem, mas a mente está demente. Trocando em miúdos, pirou. E o Dito que nós conhecemos não era assim, era?
– Não. Mas o homem tá lá. Hoje mesmo estive com ele.
– E sobre o que vocês conversaram?
– Nada. Primeiro ele me confundiu com o Masca. Mascarenhas, sabe? Depois veio com umas conversas estranhas de seu sogro querer matar ele. Se tem noventa e cinco, imagine há quanto tempo seu sogro se foi.
– Silva, você quer mesmo que eu acredite que o Dito é o mesmo?
– Não, acho que tem razão, ele não é.
– Então morreu. O que há ali é somente um corpo, uma casca sem personalidade, cujo cérebro, o órgão mais importante por carregar a memória, o raciocínio e a consciência do sujeito, pifou. Por isso é que lhe digo: é só esperar, sem remorso, que o resto pare de funcionar para enterrar o cara, pois metade dele já se foi. Meio óbvio isso, eu sei.
– É, eu entendo. O pessoal que toma conta do Dito anda meio de saco cheio, já pude reparar. Você sabe, não é fácil lidar com doente, ainda mais velho e caduco. Mas filho nenhum há de querer que morra, não é?
– Lógico! Mas que já morreu, já morreu, embora a hipocrisia humana use de toda a sua sapiência para bater o pé, dizendo que o quer vivinho.
– Mas Haroldo, o homem tá lá, de pé, forte.
– E daí? Ele o reconhece? Claro que não.
– Você fala porque não tá na pele dele. Você gostaria que jogassem você na sarjeta caso estivesse assim?
– Não sei como será e se será. Sabe, eu tinha uma avozinha que faleceu aos cento e três anos, e lúcida. Tinha lá suas manias. Até aí, quem não tem? E todos a exaltavam dizendo “que beleza!” quando alguém mencionava a idade da velhinha. Só que para andar, alguém tinha de escorar; banho, alguém tinha de dar; banheiro, alguém tinha de colaborar; nas reuniões de família rolava muita conversa e brincadeiras, e a coitada ficava a um canto quieta, sem que lhe dessem a mínima atenção. Tanto melhor, porque quando lhe dirigiam a palavra era só para tratá-la como uma caduca, perguntando se conhecia este ou aquele. O que há de bonito em se viver tanto? Só se for com o pique de um sessentão, e isso você sabe que é muito difícil. Taí o Dito que não deixa mentir.
– Você é duro nas palavras, velho?
– Por falar em velho, em nome da nossa amizade, quando eu estiver assim esclerosado, maluco, cuidará de mim? Sabe que eu vivo só e que sou mais velho que você, e que você é o meu melhor amigo. Logo...
– ???
* Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blogcafeecronicas.wordpress.com
E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com.
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