Cultura & Lazer Titulo
Silvio Lancellotti: 'mata diabo'
Do Diário do Grande ABC
24/02/2007 | 17:44
Compartilhar notícia


Cerca de três milênios atrás, na Índia, na China e nas plagas insulares das suas imediações, os povos locais aprenderam a extrair o melado da cana-de-açúcar e descobriram que, naturalmente fermentado, tal produto produzia um líquido de efeito inebriante – o álcool. Paralelamente à cerveja de cereais e ao vinho das uvas, que nasceram nos arredores do Mediterrâneo, criação dos egípcios, dos assírios e dos gregos, o álcool de cana, diluído em água, de acordo com o prazer e a resistência do seus consumidor, logo se tornou um ingrediente fundamental dos cardápios de quem necessitava de um porre.

PRAZER INSINUANTE - Na sua viagem antológica de Veneza até o Oriente, com o pai Niccoló e com o tio Maffeo, portentosos mercadores nos seus idos, Marco Polo (1254-1324) registrou em um documento o “prazer insinuante” que sentiu, ao testar a combinação, numa recepção que lhe ofereceram numa cidade da Pérsia, hoje o Irã. Além do prazer do momento, Polo também falou da ressaca seguinte.

O álcool de cana, naqueles tempos, tinha um nome genérico, “brum”, de raiz malaia. Daí, no século XVI, quando os navegadores ibéricos introduziram a cana no Novo Continente, coube aos escravos negros, alojados no Caribe, formalizarem de vez a sua realização. Consta que a primeira fabricação de rum em larga escala ocorreu em Barbados, nas Antilhas, por volta de 1600. Tratava-se, então, de uma beberagem vigorosíssima, de apelido adequado, “Mata Diabo” – que a Marinha da Grã-Bretanha, nos seus barcos oficiais ou nas naus dos seus corsários, invariavelmente carregava às toneladas. Ingerir o “Mata Diabo” acalmava os tripulantes nas ocasiões de tempestade e de oceano revolto. Existia quem trocasse um dia de pagamento por um gole robusto.

Paulatinamente, a evolução da tecnologia melhorou a qualidade do rum – que se transformou, nos séculos XVII e XVIII, em moeda de troca, ao nível do ouro e da prata. Na Guerra de Independência dos Estados Unidos, entre 1775 e 1783, os norte-americanos já desfrutavam do absurdo de quase 14 litros per capita, a cada 12 meses. Quando tomou posse, como o presidente inaugural dos Estados Unidos, em 30 de abril de 1789, George Washington (1732-1799) fez questão de oferecer a seus convivas o conteúdo de um barril de Barbados.

E o rum, enfim, começou a se eternizar como o produto de álcool mais disseminado do planeta. Mais precisamente a partir de 4 de fevereiro de 1862, data em que Facundo Bacardi Masso implantou, em Santiago de Cuba, uma sucessão de alambiques destinados “a domar, a amansar”, o impetuoso “Mata Diabo”.

Curiosidade: Bacardi montou os seus alambiques, de cobre e de ferro fundido, em um galpão habitado por morcegos frugívoros. Um funcionário do seu negócio, que não temia os tais bichinhos, desenhou sua figura num rótulo ainda primitivo – até hoje os morcegos funcionam como o logotipo da marca. Inimigos das idéias de Fidel Castro, os descendentes de Bacardi se obrigaram a sair de Cuba em 1960. E, atualmente, mantêm a sede da empresa nas Bermudas.

Com o apoio do governo de Fidel, de todo modo, Cuba preservou a sua distribuição universal de rum por meio da marca Havana Club. Ironia: utiliza a mesma tecnologia e as mesmas instalações que a sua revolução absorveu dos herdeiros de Facundo Bacardi. Presentemente, o rum, em geral, briga com a cachaça pela primazia de produto de álcool mais saboreado no universo.

RECEITAS

CUBA LIBRE

Inventada em 1885, em Atlanta, Georgia, Estados Unidos, por John S. Pemberton, a Coca-Cola entrou para a história da drincologia ainda na sua adolescência, entre 1898 e 1902, quando os soldados norte-americanos apoiaram o povo de Cuba na sua luta pela independência da Espanha. Por volta de 1900, em busca de algum relaxamento, vários deles se reuniram em um bar da calorenta Havana Vieja – e o seu capitão, necessitado, também, de um pouco de álcool, pediu ao atendente que misturasse a Coca ao rum do lugar, mais um pouco de gelo e uma rodela de limão. Gostou tanto que decidiu pagar uma rodada nova aos seus subordinados. Como brado de brinde, anunciou: “Por Cuba Libre!” E a combinação se eternizou. Detalhe fundamental, porém: a Cuba Libre de verdade, uma parte de rum claro, uma de Coca-Cola, o gelo e o limão, vai à mesa em um copo baixo, jamais no copo alto, como virou costume por aqui.

PAVÊ RAPIDINHO DA TIA ALBA

Ingredientes, para uma pessoa: 6 biscoitos do tipo Champagne ou do tipo Diplomata. 1/2 xícara, de chá, de rum escuro. 1 colher, de chá, de café, bem forte, à temperatura ambiente. Cobertura de chocolate para sorvete. Uma bola de sorvete de creme ou de baunilha. Um belo raminho de hortelã.

Modo de fazer: Com uma faca bem afiada, cuidadosamente, aparar as bordas mais gordas dos biscoitos, de modo que todos fiquem com as mesmas espessuras. Em um prato fundo, misturar o rum e o café. Velozmente – colocar e retirar, um segundo de cada lado –, molhar os biscoitos no líquido. Depositar três dos biscoitos no meio de um prato elegante. Passar uma camada singela da cobertura de chocolate. Por cima, na dimensão invertida, na perpendicular aos biscoitos de baixo, depositar os três restantes. Cobrir com papel-filme e guardar no freezer, por dez minutos. Ao servir, espalhar, no topo do conjunto, mais uma camada da cobertura de chocolate. Completar com a bola de sorvete e enfeitar, charmosamente, como na imagem, com o raminho de hortelã.

SAIBA MAIS

O NOME, COMO NASCEU

Além de ser uma corruptela óbvia da expressão “brum”, da raiz malaia, o nome rum ostenta outras origens possíveis. Há quem o considere advindo de “rumbollion”, ou “grande tumulto”, conseqüência das confusões que o abuso do seu consumo provocava nas caravelas piratas. Também pode ter surgido de “rummer”, o tipo de copo de metal que se usava naquela época. Os analistas mais fanáticos pela etimologia optam pelo sufixo de “saccharum”, o açúcar, em latim. Os mais fanáticos pelo romantismo preferem pensar na derivação de “arôme”, o aroma, em francês. No texto mais antigo que cita o produto, um édito de sua proibição, baixado em Massachusetts, Estados Unidos, então uma colônia da Grã-Bretanha, em 1657, já aparece, de todo modo, a expressão “rumme”.

O BOM RUM, COMO CONSEGUIR

Por incrível que pareça, quase todos os principais industrializadores do rum do Caribe hoje utilizam o melado importado do Brasil. Além da água necessária à diluição, em geral estimulam a libertação do álcool com algum tipo de fermento natural – por exemplo, o resíduo que sobra de um processo anterior, num regime de moto-contínuo. Numa etapa subseqüente é realizada a destilação, em alambiques convencionais ou em colunas de aço, nas quais o álcool sofre a filtragem, a retificação, a evaporação e a condensação, até pingar, praticamente gota a gota, no recipiente final. O rum branco descansa e envelhece por um ano, em tonéis de metal. O rum escuro repousa em tonéis de madeira e, eventualmente, recebe uma dosagem de caramelo para colorir.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;