Cultura & Lazer Titulo
Igreja x Ditadura
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
20/04/2007 | 07:00
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Batismo de Sangue, para o bem ou para o mal, precisava ser filmado. Tira a ditadura militar brasileira (1964-1985) de seus porões e narra a paixão e morte de um mártir da luta pela democracia. Inspirado no livro homônimo de Frei Betto, escrito entre 1973 e 1983, estréia nesta sexta-feira preenchendo a lacuna cinematográfica de um relato visceral da tortura no Brasil e até onde se chegou para quebrar resistências.

Períodos chamados de exceção são reveladores do comportamento humano. O diretor Helvécio Ratton, de O Menino Maluquinho, busca esse registro com o recorte da tortura dos religiosos dominicanos engajados na luta armada nos anos 1960. O ponto de vista é assumidamente dos freis.

Frei Betto é interpretado por Daniel de Oliveira (de Cazuza). Mas é Frei Tito (Caio Blat) que se torna o protagonista. Da ação coletiva, a história ruma para o indivíduo. São duas partes claramente distintas. Primeiro, ações políticas de oposição à ditadura e supressão das liberdades individuais, estudantes e militantes colaborando com a resistência armada em São Paulo, liderada por Carlos Marighela.

Presos, Frei Fernando (Léo Quintão) e Frei Ivo (Odilon Esteves) confessam sob tortura do delegado Sergio Paranhos Fleury (Cássio Gabus Mendes) como contatam Marighela. A repressão mata o guerrilheiro, e responsabiliza os dominicanos, visando atingir a credibilidade da Igreja, única instituição livre no período.

Com Marighela morto, Tito é escolhido ao léu, e padece sob Fleury. Chamado de Papa diante de Tito, o delegado teatraliza a tortura do religioso vestindo torturadores com hábitos clericais e colocando fio desencapado na boca de Tito. Oferece choque elétrico como comunhão. Corpo quebrado, alma firme, Tito não revela nada, mas nunca mais foi o mesmo. No exílio na França, o fantasma de Fleury o acompanha. Só o suicídio lhe traria paz.

O currículo de Ratton causa estranhamento. Como um diretor de filmes infantis se mete numa história dessas? Ex-militante da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária), Ratton recebeu de Frei Betto o livro com a seguinte dedicatória “A vida extrapola a ficção”. Esperou o distanciamento para narrar a história.

A irregularidade em sua carreira no cinema se repete no filme, mas de modo positivo. O rompimento na narrativa dialoga com a vida interrompida de Tito. O filme, paulada no público, cresce a partir de sua metade, com cenas marcantes como a missa com hóstias de bolachas celebrada na cadeia entre presos políticos. <USmarini>A pergunta “até onde se resistiria?” fica no ar junto com o sentimento de que tortura não deveria ocorrer nunca mais.

Sob muitos pontos de vista, a história da perseguição aos que lutaram contra a ditadura é recente e carece ser passada a limpo. Se o governo não o faz, negando-se a abrir os arquivos com documentos sobre a tortura, o cinema, imperfeitamente, cumpre o papel. Ainda que tarde em comparação a países como Argentina e Chile.

O que não deveria ocorrer é a repetição das palavras de um juiz no filme. Ao receber a denúncia da violência sofrida pelos dominicanos, o magistrado pede para suprimir detalhes: “Tortura é tão ruim que é melhor nem falar dela”.

BATISMO DE SANGUE (Brasil, 2006). Dir.: Helvécio Ratton. Com Caio Blat, Daniel de Oliveira, Cássio Gabus Mendes, Ângelo Antônio, Léo Quintão, Odilon Esteves, Marcélia Cartaxo. Estréia no circuito paulistano. Duração: 110 min. Classificação etária: 14 anos.



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