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Homero, de Tróia à Albânia
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
16/12/2001 | 18:18
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A Albânia é lembrada como berço de uma peculiar trindade do século XX. Num dos vértices está madre Teresa de Calcutá, pré-candidata a santa, que dispensa apresentações; em outro, o totalitarismo sombreia a figura de Enver Hoxha, déspota que sacrificou liberdades em uma tirania socialista, derivada do stalinismo e vigente durante 40 anos; e, por fim, o escritor Ismail Kadaré, 65 anos, indicado mais de 15 vezes ao Nobel de literatura e que volta à baila com o relançamento de Dossiê H (Companhia das Letras, 166 págs., R$ 24), obra de 1989 cuja nova edição chega às livrarias traduzida por Bernardo Joffily.

Vem em boa hora a reimpressão do romance. Além de Kadaré estar bem cotado nas bolsas de apostas para as próximas edições do Nobel, foi a ele que o cineasta Walter Salles Jr. pediu a bênção para levar aos cinemas Abril Despedaçado, adaptação de livro de sua autoria que pode concorrer, em 2002, ao Oscar de filme estrangeiro.

Exilado em Paris há mais de dez anos, o escritor albanês cerra em Dossiê H a tragédia maquinada em Abril Despedaçado, romance no qual é transcrita a tradição do kanun, vendeta que prega a justiça com as próprias mãos e, vez ou outra, chega a escantear a lei oficial em seu país natal. Essa reedição também se vale de tradições albanesas, usadas a serviço de uma comédia de situações forjada nos Bálcãs.

Dois pesquisadores irlandeses pretendem solucionar a dúvida de ter sido Homero, o poeta grego, um único homem ou simplesmente um editor competente que compilou retalhos de epopéias transmitidas oralmente na Antigüidade. Curiosos, Max Roth e Willy Norton, a tal dupla, seguem o aceno de um professor sobre a existência da mesma tradição oral em certa região da faixa setentrional da Albânia, país fronteiriço à Grécia.

Afoitos pela oportunidade de certificar a real existência do criador da Ilíada e da Odisséia, ambos partem rumo a N., pequena cidade fictícia no interior albanês. A secção temporal da aventura dos irlandeses é sintonizada durante o regime monárquico de Ahmet Beg Zogu, ou rei Zog I, entre 1928 e o início da Segunda Guerra.

O anúncio da chegada dos forasteiros atiça os ânimos da fauna militar e social na pequena cidade. As autoridades os tomam por espiões, suspeita que leva o ministro do Interior a enviar dois informantes aos calcanhares dos visitantes. A ala feminina – liderada pela mulher do prefeito, Daisy, que americanizou o próprio nome – os acaricia com olhares lânguidos e com sonhos musicados por tangos de Gardel.

Toda a massa se empenha em chafurdar a vida dos estrangeiros e não dá crédito aos seus reais propósitos, supostamente dignos. Para emoldurar a história, Kadaré emprega o cinismo, visível na narrativa que se adapta a cada personagem – empertigada na boca dos burocratas, efusiva nos diálogos dos irlandeses. Pois é, a Albânia pode se gabar como berço de um viçoso discípulo de Voltaire.




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