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Pacientes com alta não têm para onde ir
Willian Novaes
Do Diário do Grande ABC
18/04/2011 | 07:35
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Mesmo após dez anos da reforma psiquiátrica no País, cerca de 55 pacientes com alta médica aguardam internados em hospital psiquiátrico uma vaga em residências terapêuticas no Grande ABC. Segundo as prefeituras, a espera não tem uma data para acabar.

Esses pacientes podem ser considerados ‘hóspedes' do Hospital Lacan, em São Bernardo, o único aberto para este tipo de tratamento na região. Atualmente, quem administra o local é o Grupo Saúde Bandeirantes, que mantém convênios com as sete cidades. O local abriga 220 pacientes com transtornos mentais que já passaram pela rede pública de saúde e os casos foram considerados aptos para internação.

"A reforma psiquiátrica trouxe excelentes melhorias para o tratamento, como o fechamento de diversos locais inapropriados, mas precisa de atualização. Atualmente temos pacientes com alta e eles precisam aguardar o poder municipal montar residência terapêutica e ninguém cobra. Para fechar o hospital a mobilização é maior", criticou o diretor do Hospital Lacan, Antonio Carlos Cabral.

A luta antimanicomial já lacrou as portas de lugares como os hospitais São Marcos, em Mauá, Borda do Campo, em Santo André e Charcot na Anchieta, entre outros, consideradas verdadeiras masmorras.

 

LUTA ANTIGA

As residências terapêuticas são objetos de luta há mais de 20 anos pelos que pedem o fim dos manicômios no País. A lei determina que cada casa possa receber, no máximo, oito indivíduos e acompanhantes capacitados por 24 horas.

Hoje, o quadro na região em relação a tratamentos da saúde mental é muito melhor que no começo dos anos 2000, devido à construção dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) e dos Naps (Núcleos de Assistência Psicossocial).

A Prefeitura de São Bernardo, que mantém duas residências terapêuticas, com oito homens e oito mulheres em cada, é uma das que mais investiu na área, como na construção de um Caps III, exclusivo para este tipo de tratamento. A previsão é implementar mais uma residência neste ano. "A cidade contava com atraso significativo nesta área", reconheceu Edilaine Rosin, psicóloga da Secretaria de Saúde de São Bernardo.

Em Santo André, que conta com 32 pessoas vivendo em quatro casas do tipo, além de 63 leitos para internação de períodos curtos, está aguardando a regularização do Ministério da Saúde para a construção de residência mista.

São Caetano coloca à disposição dos munícipes um Pronto-Socorro de Psiquiatria 24 horas, Caps e ambulatório de saúde mental, mas não tem previsão de criar uma casa especial.

Ribeirão Pires tem em seu quadro oito casas especiais para mulheres e serviço ambulatorial para tratar doentes mentais. Em Diadema, o Caps conta com dez leitos e oferece consultas com psiquiatras e outros profissionais.

As demais cidades da região não responderam sobre a previsão de inaugurações de residências terapêuticas.

 

Internação é polêmica entre profissionais

 

A dona de casa Euridinalva Regina dos Santos, 45 anos, lutava para poder internar o seu filho de 22 anos no Hospital Lacan, na semana passada. Segundo ela, o rapaz é esquizofrênico e viciado em drogas. A mulher desesperada, que mora em Santo André, chorava e dizia que o seu filho estava em crise e já havia a agredido e também a irmã.

"O que os médicos querem é que ele me mate? Não vou prender ele na cama, mas não aguento mais tanta dor e sofrimento", desabafou Euridinalva.

O debate sobre internação é polêmico. Psicólogos ouvidos pela equipe do Diário foram unânimes em afirmar que o hospital psiquiátrico é coisa do passado; já os psiquiatras mais pragmáticos dizem que ainda é necessária, certos casos.

"Não tem porque as pessoas ficarem anos internados e sem que se desenvolva projetos terapêuticos individuais para esses cidadãos", sustentou a gerente de coordenação do Caps 3 de São Bernardo, Jeni Teixeira.

O psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina do ABC Sergio Baldassin defendeu que a internação é necessária, mas não pode ser feita em hospitais psiquiátricos precários. "Quem pensar em tratamento para um doente mental sem unir forças de várias áreas está completamente equivocado. É preciso utilizar medicamentos e psicoterapia."

No Grande ABC existem 91 leitos para internação, localizados nos Caps, Naps e nos hospitais estaduais Mario Covas, em Santo André e Serraria, em Diadema. Nestes lugares, a permanência não pode ultrapassar 20 dias. "Tem pessoas que demoram oito meses para retornar de uma crise e o que faz hoje e mandar para casa", comentou Antonio Carlos Cabral, do Hospital Lacan.

A Prefeitura de Santo André informou que o caso da Euridinalva é velho conhecido. Os médicos analisaram a situação do jovem e teriam concluído que o rapaz não precisa de internação. Além disso, segundo a Prefeitura, ele teria abandonado o tratamento prescrito.

 

Morador reencontra família 22 depois

 

O clima de festa contagiou uma das residências terapêuticas de São Bernardo na quinta-feira. Primeiro, os moradores tiveram um almoço especial; depois, receberam a visita das mulheres que vivem na outra casa; em seguida, um dos moradores foi surpreendido pela notícia de que sua família fora encontrada.

Vlamir da Silva, 55, havia se perdido da mãe há 22 anos em uma igreja evangélica na Capital. Durante o período, passou por diversos hospitais psiquiátricos, como o São Marcos, em Mauá. A mãe e os irmãos não desistiram do sonho de reencontrá-lo. O improvável aconteceu: com a alta do Lacan, Vlamir ganhou uma nova casa.

Um dos primeiros trabalhos da equipe é conseguir que o morador tire novamente os documentos; depois, é a vez de tentar identificar a família do paciente.

Na investigação lenta e trabalhosa, as pistas seguidas eram as poucas lembranças que Vlamir carregava na memória. "Ele dizia que tinha vindo de Itu, no interior de São Paulo", contou a psicóloga Edilaine Rosin, uma das funcionárias da casa. Outra companheira de trabalho, Deise Nascimento se encarregou de buscar mais informações.

Ao tentar localizar algum parente em Itu, conseguiu a informação de que um dos irmãos de Vlamir renovou a carteira de habilitação. "Aí foi um pulo. Ainda bem que essa família assumiu e quis reencontrá-lo", contou Deise.

A irmã de Vlamir, Ângela, veio de Belém do Pará assim que soube do paradeiro do irmão.

Das sete famílias de pacientes localizadas, apenas duas aceitaram o ente querido de volta. As demais ignoram e preferiram não manter contatos.

 

Humanização diferencia casa terapêutica de hospital

 

A diferença é enorme. Em uma, as portas são abertas e livres. Os moradores sobem e descem as escadas. Entram e saem dos cômodos. O sorriso existe. No outro, as portas são imediatamente fechadas. Os olhares, perdidos. O tempo parece não passar. Os pacientes usam uniformes. A única semelhança entre os dois locais é abrigar pessoas com algum tipo de transtorno mental.

O primeiro lugar é a residência terapêutica masculina em São Bernardo. Os usuários têm nomes, Juvenal, Cícero e Maria, e usam a camisa do time de futebol do coração. O segundo é Hospital Lacan, na mesma cidade, conhecido como o manicômio da Scania ou Scanião (por estar localizado em frente à fábrica).

Quem está na casa já viveu no hospital. Com tratamentos adequados e modernos, a tortura e métodos ultrapassados foram deixados para trás, e as altas médicas começaram a surgir para pessoas que viveram por décadas em verdadeiros calabouços. Mas isso não quer dizer que o hospital precisa ser desativado. A própria lei sugere que a internação só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

A coordenadora pedagógica das casas terapêuticas de São Bernardo, Maria Dirce Cordeiro, 53 anos, sabe muito bem do que fala. Ela ficou "fora do ar" por 12 anos. "Era doidinha de tudo, tinha vezes que me considerava a Joana D'arc, outras uma madre. Foi um sofrimento para a minha família."

A senhora alegre passou por diversos tratamentos e hoje milita na frente antimanicomial. Durante a recuperação, viu de perto as atrocidades que eram cometidas nos hospícios. "Só quem viveu pode falar. Hoje, quero levantar essa bandeira para quem não tem condições de protestar."




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