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Sonho de liberdade de um ex-detento
Por Ari Paleta
Do Diário do Grande ABC
25/10/2015 | 07:00
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Com 7.254 presos, a lotação dos CDPs (Centros de Detenção Provisória) do Grande ABC é de quase três vezes o número de vagas – 2.615, segundo dados da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária). Isso equivale a 177% mais reclusões do que suportariam, na prática, as unidades prisionais da região.

Nesses mesmos CDPs e em outras unidades prisionais espalhados pelo Estado, há muitas histórias com final feliz. Muitas outras, entretanto, têm destino desesperador. É o caso do andreense Claudinei Minocelli Bastos Lima, 35 anos, que poderia tranquilamente ser o personagem principal da música dos Racionais Mc’s: “Um homem na estrada/Recomeça sua vida/ Sua finalidade/A sua liberdade/Que foi perdida, subtraída/E quer provar a si mesmo que realmente mudou/Que se recuperou/E quer viver em paz/Não olhar para trás/Dizer ao crime: nunca mais.”

Lima nasceu em Santo André em 1980, mais precisamente na Vila Palmares. Quando tinha apenas 21 dias de vida, sua mãe biológica, Rosa Maria Minocelli, viciada em drogas e ganhando a vida nas esquinas, se prostituindo, resolveu doá-lo para uma família mais estruturada e que poderia prover o carinho que ele merecia, já que o pai era desconhecido. Foi quando surgiram Lourdes Inês Garcia e seu marido, Mauro Bastos Lima, que estenderam as mãos e o registraram. Com isso, passou a morar na Vila Guiomar, nos prédios do IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriais). Ali passou a infância tranquilo, como quase todas as crianças de classe média baixa.

QUANDO TUDO COMEÇOU

Mas, em 1992, já adolescente e ainda cursando a 5ª série do Ensino Fundamental, Lima fez amizades que mudariam para sempre o seu estilo de vida. Foi por meio de um menino da mesma idade, mas com uma família conhecida no tráfico da região, que ele entrou para o mundo das drogas, o que se tornou um caminho sem volta. “Comecei a usar e a fazer pequenos roubos, como bonés e tênis, em portas de escolas para manter o vício”, lembra.

Em 1994, com medo de um genro ciumento que disparou contra a janela dos quartos da casa e já notando que a vida de seu filho adotivo precisava de outro rumo, dona Lourdes resolveu se mudar para Piracicaba, no Interior, com seus filhos, onde achou que estaria longe das más influências. Chegando lá, Lima retomou os estudos e ficou dois meses sem usar drogas nem roubar. Mas não demorou muito para fazer novos amigos e, mais uma vez, amizades erradas que o levaram a retomar os antigos hábitos.

Com o passar do tempo, o adolescente cresceu e tornou-se maior de idade. Foi então que, em 1999, roubando uma loja no Centro de Piracicaba, foi preso pela primeira vez e levado para o Dacar 9 (como eram chamadas as cadeias antigamente), onde ficou detido por sete meses. Passado esse tempo, conseguiu liberdade provisória. “Quando sai, fiquei pior, roubando sempre mais e mais.”

Foi assim que se tornou um dos assaltantes mais procurados de Piracicaba e renomado no mundo do crime. Quando não tinha mais saída, e a qualquer momento poderia ser preso novamente, resolveu fugir para Santo André. Bastaram quatro meses para que também se tornasse procurado na região. Então, mais uma vez ele fugiu, desta vez para a Praia Grande, no Litoral.

Em 2001, passeando pelo calçadão, foi reconhecido pela polícia e preso por ser procurado por dezenas de roubos. Ficou preso no Dacar 10 por um ano e meio, até que resolveu cavar um buraco no chão com mais 12 homens e escapou. Voltou para Santo André e, após 15 dias, foi preso praticamente na esquina de sua antiga casa, como fugitivo. Foi levado para a cadeia do antigo 4º DP (Departamento de Polícia) da Vila Palmares, onde permaneceu por oito meses e novamente fugiu, com mais sete companheiros, só que desta vez furando o teto.

DE VOLTA PARA A CADEIA

Na rua, mais uma vez Lima tentou se reerguer com o crime. Após um mês, em uma saidinha de banco, foi preso após soltar a vítima. Voltou à reclusão na Palmares e, na sequência, foi transferido para a cadeia de São Caetano. Após diversas tentativas de fuga, nos nove meses em que esteve por lá, foi transferido para o presídio do Belenzinho 1 e, na sequência, foi enviado à penitenciária de Bauru.

Segundo ele, por não integrar nenhum grupo de criminosos, ficou no Pavilhão 1, ou seja, no chamado ‘seguro’ na linguagem carcerária, local em que ficavam os presos por crimes como estupro, pedofilia, delação e os demais que não tinham envolvimento com gangues. Lá esteve por cinco anos e, nesse período, viu o surgimento de uma facção que brigava pelos direitos da população carcerária. No entanto, esse grupo mudou de perfil, vindo mais tarde a se tornar o PCC (Primeiro Comando da Capital), o que tirou de sua cabeça fazer parte dele. “Lá dentro é difícil. Podia até não ser da facção, mas ‘o coisa’, como se chamavam os inimigos do principal grupo, também queria que eu me associasse, e a única saída era viver ou morrer. Preferi viver e, com ‘o coisa’, tive que dar um jeito.”

Após cumprir a pena, Lima conseguiu o benefício da PAD (Prisão Albergue Domiciliar). “Fiquei em paz por quatro meses, mas nenhuma porta de emprego se abriu para mim. Tentei lava-rápido, obras, lojas e postos de combustível, mas para um ex-detento arrumar um trabalho, é muito difícil. Para a sociedade, fui condenado a prisão perpétua, sem nunca mais ter uma chance. O único abrigo que tive sempre que saí dessas situações de prisão foram os braços da minha mãe, que nunca virou as costas para mim.” Sem emprego e dinheiro, em 2007 Lima voltou para o mundo do crime. “Participei de uma tentativa de assalto a uma loja de conveniência em Piracicaba, mas fui preso em flagrante. Me mandaram de volta para Bauru, mas a situação carcerária não estava a meu favor. A prisão estava totalmente no comando do PCC e, como sou ‘carreira solo’, fui transferido de prisão em prisão até agora, neste ano, quando paguei toda a minha dívida.”

CONDENADO PELA SOCIEDADE

“Nesses anos todos de prisão, estive em muitos lugares e posso afirmar que o sistema carcerário de São Paulo é falido. É uma fábrica de criminosos. Para se ter uma ideia, fui detido por tráfico de drogas dentro da cadeia, ou seja, estava preso e fui preso dentro da minha própria prisão. Volto a afirmar que respeito a facção, mas nunca quis participar de algo que era muito maior que eu.”

No último período de reclusão, Lima perdeu a mãe. Com isso, ao ganhar novamente a liberdade, passou a morar nas ruas. “Essa situação é nova em minha vida e posso garantir que é muito triste. Sou tratado como lixo, isso quando sou notado nas calçadas e faróis. Nas noites de sexta e sábado fico mais preocupado, pois os ‘boys’ passam por mim e me chutam, urinam e até jogam fogo. Isso cria uma mágoa, pois sei que errei, mas paguei um preço muito caro. Perdi boa parte da minha vida enjaulado como um animal e, quando consegui a liberdade, descobri que isso era só uma farsa, pois continuo preso ao vício do crack e a uma sociedade da qual não faço parte”, desabafa. “Tenho o sonho de fazer tratamento, me afastar das drogas, arrumar emprego, sair das ruas e viver debaixo de um teto. Posso dizer que para a criminalidade, não volto. Meus conhecidos e padrinhos do crime nunca ao menos perguntaram se eu precisava de alguma coisa. Eles me levaram até o fundo do poço, mas, para subir, ninguém aparece.”

Poder público ajuda na reinserção do egresso no mercado de trabalho

Para quem busca uma oportunidade, o governo estadual oferece programas voltados para ex-detentos que precisam ser reinseridos no mercado de trabalho e buscar melhor qualificação profissional. Para isso, basta se cadastrar na Caef (Central de Atenção ao Egresso e Família) e em PATs (Postos de Atendimento ao Trabalhador). Com esses serviços de recuperação, fica mais fácil de se recolocar, já que eles têm o intuito de ligar o candidato a empresas por meio do Emprega São Paulo.

Há também projetos como o Frente de Trabalho, que oferece vagas para limpeza, poda, conservação e manutenção de órgãos públicos.

Segundo a coordenadora substituta de Reintegração e Cidadania do Estado,Márcia Antonietto, dentro dos presídios é dada orientação sobre o que fazer quando sair em liberdade. Pessoas qualificadas, como técnicos da secretaria, visitam as unidades prisionais com o intuito de fornecer os esclarecimentos necessários aos egressos, como onde encontrar os locais de inscrição nos programas. A secretaria ainda faz encaminhando para albergues ou Caps (Centros de Atenção Psicossocial).

Até setembro, 88.449 pessoas haviam procurado pelos programas para ex-detentos, a maioria com o objetivo de regularizar documentos.

O programa Caef foi criado em 2003 e, até hoje, já atendeu 418 mil ex-detentos em suas 37 centrais de atendimentos a egressos.

Não se pode ressocializar quem não foi socializado

É comum ouvir, em letras de rap, relatos sobre a rotina de presidiários. Um rapper em especial, Marcos Fernandes Omena, 42 anos, o Dexter, pode comentar a vida dentro e fora da cadeia com muita propriedade, já que seu exílio, como costuma chamar o tempo em que ficou detido, foi longo: 13 anos. Hoje faz quase cinco que está livre.

O sistema carcerário não incentiva quem passa por ele a voltar para a sociedade de forma diferenciada, avalia Dexter. Para ele, deveriam existir políticas de cursos profissionalizantes dentro da própria cadeia e, ao sair dela, os presos poderiam ser encaminhados a determinados serviços. “Se isso não é feito e você solta as pessoas sem perspectiva de vida, a esperança do ex-detento se acaba e ele acaba voltando para as ruas. Muitos dos que preferem não retornar para o crime por medo de serem presos de novo vão para os faróis pedir esmolas. Essas pessoas sofrem, pois muitos familiares os abandonam por vergonha. Sem contar que alguns parentes morrem enquanto eles estão presos e outros mudam de endereço. Como voltar para a sociedade onde o ex-detento só vai encontrar o preconceito e a política do medo? Como discutir a ressocialização de quem sequer foi socializado?”, questiona.

Para ele, outro grande problema é o fato de, ao buscar um emprego, os estabelecimentos exigirem atestado de antecedentes criminais, pois, mesmo que o egresso já tenha cumprido a pena, o documento que demonstra seus erros está lá. “Acho que isso deveria ser extinto. Como também acredito que o preso condenado deveria ter o direito a voto, para tentar mudar o seu País”, aponta. “Posso dizer que a cadeia é um dos lugares mais humanos por onde já passei. Mas é humano pelas pessoas que estão lá. Muitas vezes os funcionários, conhecendo nossas histórias, se preocupam mais que os nossos governantes. Não é possível que o governo prefira gastar R$ 3.000 com um preso por mês, mas não invista o mesmo em um estudante. Seria melhor pegar o dinheiro e entregar para o indivíduo e pedir que não roube mais.” Segundo cálculos da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária), cada detento custa R$ 1.450 por mês, em média. Nesse valor já estão inclusas as despesas com água, luz, alimentação e funcionários.

ESCOLA

O sistema carcerário brasileiro está entre os cinco maiores do mundo, em termos de população prisional, aponta Dexter. “Em um País que só investe na opressão e repressão, nos últimos dez anos foram construídas 43 unidades prisionais no Estado. O apelido dos presídios no Brasil hoje é ‘faculdade’, onde os presos que roubaram um saco de feijão saem especializados em assalto a banco, pois lá dentro existem grandes ‘professores’. Isso não é culpa desses ditos ‘professores’, é apenas um manual de sobrevivência. Eu também aprendi, mas canalizei para o bem, para o rap. Tive vários convites para fazer parte de quadrilhas, mas não aceitei. E o cara que não tem a música, como eu, o que vai fazer? Alguém que não tem visibilidade nenhuma dentro da comunidade e é chamado para praticar um crime, se não tiver nenhuma estrutura, vai, afinal, é a chance de poder ter a camiseta, o tênis, o relógio ou a blusa que deseja. Todo o mundo quer ser notado de uma forma ou de outra.”

O rapper desenvolveu o projeto Como vai ser o mundo enquanto estava cumprindo regime semiaberto em Guarulhos. Do total de 650 presidiários, 500 participavam dele. O objetivo era provocar o indivíduo a pensar no futuro e, para tanto, a iniciativa levava até eles oficinas de fotografia, jornal, vídeo e música, entre outras. “Além de tudo isso, levávamos carinho e amor para todos eles. Deu certo porque era feito por gente que viveu tudo aquilo e que sabia como era o mundo deles. Estamos falando de seres humanos que, portanto, deveriam ser tratados como tal.”

Segundo Dexter, quando sai, 95% da população carcerária tem a mentalidade de não reincidir no crime para não ter de voltar à prisão. Na prática, porém, se não houver trabalho ou planejamento, muitas dessas pessoas voltam a cometer crimes. “Hoje temos que olhar principalmente para as nossas crianças pois, se começarmos a cuidar delas agora, colheremos os frutos em 20 anos. São necessárias mudanças urgentes por parte dos nossos governantes. Sem a estrutura do Estado, vamos demorar muito mais.”

A vida de um trabalhador iludido pelo tráfico de drogas

Ser um músico de sucesso, gravar vários discos e tornar-se famoso. Este era o sonho do jovem que nasceu em São Vicente, em 1974, ano em que grandes sucessos da música brasileira surgiram, caso de Charlie Brown (Benito de Paula), Felicidade (Caetano Veloso), Canto de Areia (Clara Nunes) e Canta, Canta, Minha Gente (Martinho da Vila).

Essas músicas fariam parte da vida deste homem, que pediu para não ser identificado, de maneira que se tornariam sua trilha sonora. Em 1996, com um pequeno sucesso na Baixada, foi convidado para tocar no pagode do Chrigor (ex-vocalista do Exaltasamba) algumas vezes e, em uma dessas oportunidades, conheceu uma garota que namorou, casou-se e teve seus filhos. Para sustentá-los, sempre dividia seus dotes artísticos com trabalhos duros como pintura e serviços gerais.

VIDA DO CRIME

Com o passar do tempo, a música começou a andar devagar em sua vida. Com filhos para sustentar, resolveu buscar um caminho onde dinheiro não faltava e, assim, entrou para a vida do crime. Ganhando seus clientes no tráfico de drogas, a então consagrada música Felicidade (Caetano Veloso) passou a ser seu hino: “Felicidade foi embora”. Sim, pois a felicidade se dava por encerrada ali, já que logo ele foi preso. Mas, apesar do envolvimento com o tráfico, foi absolvido e voltou ao crime como se tivesse tirado a sorte grande.

Em 2000, foi detido e absolvido mais uma vez mas, em 2001, foi condenado e levado para o antigo Dacar 7. No mesmo ano, conseguiu sair em uma fuga em massa. “Foi quando desisti do crime e voltei a trabalhar com bicos, na tentativa de mudar.”

Levando uma vida quase normal, apesar da dívida com a sociedade que ainda não havia sido paga,estava em uma manhã de domingo de 2004 dentro da sua casa, confraternizando com a família e amigos, quando foi capturado e enviado para a prisão. “Em seis anos detido aprendi a cuidar dos doentes e feridos da enfermaria. Briguei muito lá dentro para colocar o departamento em melhor estado. Posso dizer que lá parecia o Vietnã, era gente chegando toda hora com problemas diversos e pouca estrutura para atender essas pessoas.”

GRATIDÃO

Quando recluso, ele procurou trabalhar muito dentro da cadeia para que o tempo passasse mais rápido. Dessa forma, fez jus ao que seu pai sempre lhe ensinou: que o trabalho dignifica o homem. “Mas o que mais me deixava feliz era o agradecimento dos familiares dos presos que eu salvava na enfermaria. Ganhava bolo, doces e cigarros, mesmo sem fumar”, lembra.

“Em 2010 saí da prisão. Fui procurar pelos programas para egressos mas, infelizmente, me deparei com funcionários que não demonstraram o menor respeito por mim. Acho que essas pessoas nunca tiveram parentes nessa situação, então atendem de qualquer jeito”.

TRABALHO REGISTRADO

Em liberdade, ele então voltou a trabalhar, atuando na informalidade, mas sem voltar para a vida do crime e com muita vontade de ser registrado.

Após três anos com serviço fixo e quase perdendo as esperanças de ver sua carteira assinada, resolveu entregar currículo em uma rede de supermercados da região. No dia do aniversário de seu filho mais velho, em 1º de junho de 2014, foi chamado para finalmente trabalhar com registro. “Hoje ando de cabeça erguida, sempre com o meu crachá na carteira, pois tenho muito orgulho da oportunidade que tive para dar a volta por cima. Ainda tenho alguns sonhos, como poder levar minha família para conhecer meu pai na Bahia e gravar um CD.”

Talvez a música ideal para a atual fase de sua vida seja: “Canta, canta minha gente/Deixa a tristeza pra lá.”

“Na vida só corri e corri, e o que consegui foi dar de cara com as grades. Hoje prefiro esperar, pois tudo tem a sua hora.”  




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