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Vida de trabalho entre os mortos

Com uma média de dois enterros diários, a estimativa
de coveiro é de que já tenha sepultado 20 mil pessoas

Angela Martins
30/10/2011 | 07:00
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"Aqui é um dos melhores lugares do mundo." Essa frase poderia descrever qualquer um do muitos locais paradisíacos do Brasil, mas faz referência a um endereço que pouca gente gosta: o cemitério. O coveiro Severino Soares da Silva, 44 anos, 28 deles dedicados à profissão, não troca seu trabalho por nada desse mundo - ou do outro.

Com uma média de dois enterros diários, a estimativa do coveiro é de que já tenha sepultado 20 mil pessoas. "Estou nesse trabalho por opção. Nunca quis um chefe chato e o serviço no cemitério é muito tranquilo. Adoro ser coveiro", revela. O medo dos mortos nunca existiu para Silva. "Não acredito em fantasmas nem tenho medo da morte. Afinal, um dia todos nós vamos nos encontrar com ela".

Bem-humorado, ele cuida todos os dias do próprio túmulo, no Cemitério Municipal Vila Euclides, em São Bernardo, onde trabalha. Nas quase três décadas passadas entre as alamedas do cemitério, Silva já enterrou amigos e parentes. "Apesar da proximidade, nunca deixei a emoção tomar conta. Tem de ser profissional."

PROFISSIONALISMO

Lidar com a morte todos os dias não é para qualquer um. Mais do que um simples trabalho, a função de coveiro envolve, muitas vezes, confortar a família que perdeu um ente querido. "O fato de ver sempre pessoas tristes mexe um pouco com a gente. Às vezes dá vontade de chorar também", comenta o coveiro José Antunes Nogueira, 56.

São seis anos exercendo a profissão no Cemitério Municipal Santa Lídia, em Mauá. No entanto, Nogueira passou no concurso público da Prefeitura da cidade para o cargo de pedreiro. "Acabei sendo transferido para cá e fiquei. Não é um trabalho ruim", define. Mesma situação de Nourival de Souza Dias, 43. O pintor também foi transferido para o cemitério. "Como já havia trabalhado três anos no IML e outros dez em uma funerária, estava acostumado a lidar com os mortos."

O profissionalismo da equipe só deu lugar à emoção quando ambos enterraram um companheiro de trabalho há um mês. Vítima de enfarto, o amigo tinha trabalhado normalmente no dia anterior à morte. "Foi um baque, não esperávamos. Nessa hora não teve como segurar", explica o diretor do departamento de serviço funerário de Mauá, Getúlio Batista de Andrade.Acostumado a acompanhar os serviços funerários, Andrade está se preparando para encarar a exumação da mãe no próximo ano. "Vai ser difícil, mas terei de passar por isso. Quando é com a gente, é mais complicado."

VIDA BREVE

Entre os profissionais dos cemitérios, uma situação é considerada a parte mais difícil de um trabalho relativamente simples. O enterro de crianças e jovens. Ver o fim de uma vida que mal começou deixa os coveiros e administradores sensibilizados.

"Durante os enterros sou profissional, não deixo que a emoção tome conta. Mas quando vejo uma criança morta é bem ruim. Faz a gente refletir sobre a vida", conta o coveiro Emecio Martins da Silva, 55. Para o administrador do Cemitério Vila Euclides, Clodomir Santos, 47, sepultar idosos é mais fácil. "As pessoas mais velhas já viram muitas coisas."

Coveiras sim, mas sem perder a vaidade

Em um mercado dominado por homens, o Cemitério Municipal do Baeta Neves, em São Bernardo, traz uma situação inusitada. Das sete vagas para coveiros, quatro são preenchidas por mulheres. Apesar do serviço pesado, elas não perdem a vaidade. Com batom sempre a postos, elas também não dispensam o filtro solar.

"Antes a gente se maquiava, penteava o cabelo e até passava perfume antes dos enterros. Agora ficamos só no batonzinho", brinca Dalva Rocha Lopes, 52 anos. A coveira passou no concurso da Prefeitura há 20 anos, juntamente com a amiga e vizinha Maria de Lourdes Gomes da Silva, 55.

No começo, confessam, foi difícil encarar a rotina. "Passava mal, não acreditava que ia enterrar as pessoas. Tinha medo, nem conseguia dormir à noite", revela Dalva. O trabalho ainda incluía abrir as covas na terra, com a enxada. O medo só passou após a primeira exumação, depois de cinco meses no emprego.

A sensibilidade feminina ajuda na hora de lidar com a família. "Somos mais delicadas no trato com os mortos. Muitas vezes a família nos agradece pelo trabalho", diz Maria de Lourdes. O cuidado se estende com o cemitério, considerado por elas como uma segunda casa. As coveiras cuidam da limpeza e da manutenção, mesmo sem a obrigação de fazê-la.

Embora acostumadas aos enterros, ambas passaram por uma experiência traumática recentemente. Um colega de trabalho assassinado foi sepultado pela equipe do cemitério. "Tive uma crise de choro e jurei que nunca mais iria enterrar alguém que conhecia", conta Maria de Lourdes.

PRECONCEITO

O machismo já deu problemas às coveiras. No início, os colegas de trabalho estranharam a presença delas. "Tinha um coveiro que não se conformava em nos ver aqui. Dizia que era para a gente ir lavar louça", diverte-se ela.

Até mesmo agora, passados 20 anos, o preconceito ainda persiste em algumas ocasiões. No entanto, os coveiros do cemitério já não se importam em dividir o trabalho com mulheres. "É bom conviver com elas. Já fazia esse trabalho em outros cemitérios e quando fui transferido para cá, notei que elas são mais sensíveis. Isso acabou devolvendo a minha sensibilidade", revela o coveiro José Matosinhos, 45.
Medroso vira coordenador de cemitério

Medo do escuro, de ficar sozinho, dos mortos. Há 20 anos, Alexandre Ferrari tinha medo de qualquer tipo de situação. A necessidade, porém, tratou de transformá-lo. Recém-casado, ele precisava de emprego e conseguiu em um necrotério. "Tinha de trocar a roupa do cadáver e auxiliar na necropsia. Com o tempo, acabei me acostumando."

Há oito meses, Ferrari prestou concurso para coveiro em Rio Grande da Serra e logo foi promovido a coordenador do Cemitério Municipal São Sebastião. "É um trabalho que ninguém quer. Para ter ideia, foram abertas três vagas para coveiro e somente um candidato apareceu: Eu." Depois de tantos anos convivendo com a morte tão de perto, Ferrari acredita que não existe trabalho melhor do que esse.

Morada dos mortos se transforma em ponto de encontro

Há quem fuja, há quem goste. Para o vereador e presidente da Câmara de Rio Grande da Serra Waldemar Perillo (PSDB), visitar o cemitério é um programa agradável. "Gosto de vir aqui. Encontro os amigos, o que transforma o local em um ponto de encontro."

Pelo menos duas vezes por semana o político vai a enterros. Mesmo de quem ele não conhece. "É bom ir ao enterro dos outros, porque quando deixar de ir, significa que o morto é você", brinca. Já o aposentado Atílio Dorattioto faz questão de limpar o túmulo da família a cada 15 dias, no Cemitério Santa Lídia, em Mauá.

"Fui um dos primeiros a comprar um terreno no cemitério", diz. No local estão enterrados dois irmãos, a cunhada e a sobrinha. "Tenho de cuidar bem porque será a minha próxima morada."

No cemitério de Mauá ainda é possível encontrar outro tipo de frequentador. O vira-lata Fininho, um morador fixo dali. Ainda filhote ele foi abandonado na porta do cemitério e os coveiros o adotaram. Hoje, ele está sempre pronto a acompanhar os "donos" no dia de trabalho.

FANTASMA

Embora circule boatos de que o fantasma de um caçador circule à noite pela quadra 12 do cemitério de Rio Grande, Ferrari não acredita que os mortos perambulem por aí. "É o medo que nos faz ver aparições. Eu mesmo nunca vi nada diferente".




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