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Japão: o poder pela cultura
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
27/03/2005 | 13:30
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Os Estados Unidos, com seu aparato bélico e indústria de entretenimento são a única superpotência militar e cultural. Única? Não, pelo menos, não mais no monopólio da fabricação de ícones pop. O Japão – que se recusou a ser uma nação militarizada com sua Constituição pacífica de 1947 após a Segunda Guerra e não tem armas nucleares – adotou a diplomacia cultural para veicular uma imagem positiva do país em nível internacional.


A principal arma diplomática japonesa é sua cultura pop – desenho animado japonês (ou animês), histórias em quadrinhos (ou mangás), música pop, artes marciais, moda, música. O primeiro-ministro japonês, Junichiro Koizumi, declarou em janeiro para a agência de notícias France Presse que o arquipélago não devia se limitar a ser um líder tecnológico, mas também afirmar sua presença internacional com “soft power” – contraponto ao “hard power”, militar e destrutivo. O Japão estaria mudando de sociedade industrial para sociedade produtora de cultura pop, e a expressão preferida para isso no Japão é “cool power” (poder legal).

A invasão da cultura “cool Japan” começou entre os brasileiros com a popularização da televisão, veículo que exibe os animes e serve de monitor para videogames, especialmente na década de 1980. No Grande ABC, há “diplomatas” do “cool Japan”. Em São Bernardo, oito pessoas formam o grupo Kyôrakuzá Harmonia Taiko. Aqui é a tradição milenar que se junta à alegria e à jovialidade brasileiras.

No Brasil, a participação da indústria cultural nacional na economia é de 10% do PIB (Produto Interno Bruto), cerca de R$ 85 milhões. A média internacional das indústrias criativas representa 7% do PIB mundial, ou US$ 1,3 trilhão. No Japão, cujo PIB é o segundo do mundo, US$ 4 trilhões, a indústria cultural movimenta US$ 13 bilhões por ano. Bem menos que a indústria automobilística, mas é um valor que triplicou nos anos 1990 capitaneado por mangás, animes e videogames.

Mangás são HQs (histórias em quadrinhos) escritas em forma de novela, com um tema central e histórias paralelas, escritas para várias faixas etárias, até jovens e adultos. A rede Mandrake, que vende mangás, tem filiais nos Estados Unidos e Europa. Os consoles PlayStation e Nintendo dominam o mercado de games. Pelo menos 60% dos desenhos vistos na TV mundial são japoneses – ou influenciados por japoneses. A força está na interação entre esses setores. Personagem de mangá quase sempre migra para o animê. Depois, vem o licenciamento de produtos – a gatinha Hello Kitty, criação do designer Yuko Yamaguchi, movimenta US$ 1 bilhão anuais em vendas. Os monstrinhos Pokémon começaram no game e foram parar no vídeo, no cinema, em subprodutos.

A animação japonesa é a maior responsável pela expansão do “cool Japan”. Há gigantes como Studio Ghibli, de Hayao Miyazaki, o Disney japonês, cuja empresa tem até um parque temático próximo a Tóquio. Seu foco são filmes animados de longa-metragem, que arrastam multidões para o cinema (A Viagem de Chihiro teve 23,5 milhões de espectadores no Japão). Na animação para a TV, o líder é o estúdio Toei, fundado em 1956. Criou mais de 150 séries de sucesso, como Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball, Sailor Moon e Digimon. A cada ano, 250 novos episódios novos de animação saem de seus escritórios. Alguns títulos exibidos na TV brasileira – como Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball – são voltados para público adolescente e até adulto e erroneamente programados em horários matinais para o público infantil. E boa parte da produção de melhor qualidade nem chega ao mercado brasileiro – ainda.

Tudo começou com Astro Boy (Tetsuwan Atomu), em 1963, animação criada pelo desenhista Osamu Tezuka (1927-1989), único a ter equilibrado sucesso comercial com produção artística em mangá e animê. Em 1965, Tezuka lançou o primeiro animê em cores, Jungle Taitei (Kimba, o Leão Branco), versão de um mangá dele mesmo, de 1950, sobre um filhote de leão africano, cujo pai morre ao salvá-lo, e que aos poucos ganha maturidade, lutando contra caçadores e preparando-se para ser o rei dos animais. Disney foi acusada de plágio quando lançou O Rei Leão – história bem parecida, diga-se.

Após a década de 1980, quando o arquipélago japonês era a nova superpotência da economia, vieram crises políticas, institucionais e econômicas dos anos 1990, que derrubaram o otimismo japonês. Contudo, com o universo pop deu-se o inverso. O Japão despontou como centro de tendências em animação, moda e design. Valorizar a criatividade, aspecto subaproveitado até então em uma sociedade extremamente disciplinada e padronizada pela eficiência produtiva, passou ser levado em conta.

“Os japoneses estão descobrindo que só valorizar as pessoas que fazem bem feito a mesma coisa sempre nas empresas não basta. Tem de estimular a criatividade. Tudo funciona na sociedade racionalizada japonesa, e os lados emotivo e criativo perdiam para a indústria cultural norte-americana. Hoje, o produto bem feito e bem acabado não é mais atraente. O diferente, o feito à mão, o artesanal têm sido valorizados”, disse Léo Sussumu Ota, publicitário, diretor cultural da Bunkyo – Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa.

Para Ota, há uma relação entre hardware/software e a expansão do “cool Japan”. “A indústria eletrônica propiciou plataforma para a cultura japonesa. A invasão de animes e mangás veio com o game, baseado em imagens de mangás e na ação de filmes japoneses. A cultura pop está associada a uma indústria que se movimenta para interligar as demais. E ainda tem a web. A convergência das mídias propaga qualquer cultura”.

Da contradição permanente no Japão entre o tradicional e o moderno, surge um mix de culturas ocidental e oriental. Quentin Tarantino fez Kill Bill Vol. 1 com preponderância na referência a mangás e animes. Matrix também. Os filmes de samurai estabelecem relação de heroísmo com os western. A música japonesa adotou ritmos de outros países, vide o pianista Ryuchi Sakamoto com a bossa nova. “Esse mix cria um produto cultural interessante, uma interação com a cultura global. É a globalização da cultura”, disse Ota.

Quem refletiu sobre esse fenômeno foi o cientista político norte-americano Douglas McGray, em um ensaio escrito em 2002: “O Japão está se reinventando como superpotência. Em vez de afundar por infortúnios políticos e econômicos, a influência cultural global do Japão cresce. De fato, da música pop aos produtos eletrônicos, da arquitetura à moda, da culinária às artes plásticas, o país tem mais influência agora do que tinha na década de 1980, quando era superpotência econômica”. Graças ao que McGray ironizou chamando de “Atração Interna Bruta” (“Gross National Cool”).

No livro O Paradoxo do Poder Americano (2002), o ensaísta norte-americano Joseph S. Rye Jr., ex-vice-secretário de Defesa do governo Bill Clinton, ex-presidente do Conselho de Inteligência Nacional e crítico da política externa do país, sugere que os Estados Unidos deveriam se afastar do uso da força militar e engajar-se na relação construtiva com outros povos. Seu argumento – mirando a intranqüilidade gerada pós-11 de setembro de 2001 – é que cada vez mais o país deveria adotar o “soft power”, termo cunhado por ele há mais de uma década. O “soft power” cooptaria pela adoção de valores e cultura.

Porém, o país que ainda têm a maior indústria cultural do mundo com o cinema, a música e a televisão chegou tarde ao uso diplomático da cultura pop, optando pela arrogância e unilateralismo. A tendência é esse uso se tornar cada vez mais importante na era da informação globalizada. E isso, os japoneses entenderam, desde que não tropecem na própria imagem, como seus rivais ianques.




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