Política Titulo 60 anos em entrevistas
‘A Cultura é um elemento transformador’
Por Miriam Gimenes
Do Diário do Grande ABC
24/03/2018 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


Sonia Varuzza, 59 anos, vai chegar aos 60 praticamente junto com o Diário. No ano em que comemora seis décadas de vida, a diretora da empresa Diversão e Arte Produções, que nasceu em Santo André e, nos últimos 28 anos, já fez acontecer centenas de espetáculos na região – com nomes como Fernanda Montenegro, Raul Cortez e Tonia Carrero –, pretende passar o seu legado para os mais jovens. É que a produtora, que com seu trabalho criou três filhos – e deles ganhou cinco netos –, vai ministrar um curso em que ensinará sobre produção. Apaixonada pela arte, a Cultura, para ela, é primordial para mudar os rumos deste País.

Sonia Varuzza e o Diário
Durante muitos anos a produtora morou vizinha ao Diário. Chegou a vender sanduíches naturais aos jornalistas que faziam, toda sexta-feira, o chamado ‘pescoção’ de fechamento. “Uma vez participei de um concurso de contos. Datilografei o texto enquanto amamentava minha filha e precisava fazer várias cópias, mas estava sem dinheiro. Aí fui até o Diário, onde xerocaram para mim sem cobrar. Levei correndo o texto e meu conto foi premiado. Tenho um carinho pelo jornal.” Ela também ficou em segundo lugar do Concurso de Tortas promovido pelo jornal, em 2009.

Quem é Sonia Varuzza?
É uma mistura de coisas. Sou produtora, gosto muito de ser. Sempre falo que sou produtora porque não sei atuar, não sei tocar, cantar. É uma forma de eu poder trabalhar com arte. E sou garimpeira também. Então vou procurando as coisas que são legais, que me emocionam, e faço questão de trabalhar só com isso. É o privilégio que tenho agora, no ano em que faço 60 anos (dia 12 de outubro). No começo eu não podia escolher muito, hoje eu posso. Então as peças que trago são todas testadas e aprovadas por mim.

Como construiu sua história na região? Nasceu aqui?
Nasci em Santo André e tive meus três filhos aqui. Tenho uma relação muito próxima com o Teatro Municipal, porque trabalhei aqui durante sete anos. Fazia a pauta, então trouxe para cá Pérola, com a Vera Holtz, Caixa 2, com Juca de Oliveira, trouxe Raul Cortez, enfim, trouxe muita gente bacana aqui no nosso teatro, porque ele é muito perfeito. Meus filhos têm uma relação próxima com o teatro, porque eu os trazia para verem as peças e eles ficavam na coxia. Muito cedo eles acabaram descobrindo quem era Fernando Pessoa, de tanto ouvir os heterônimos. Foi um aprendizado muito grande para nós quatro.

Como entrou a arte na sua vida?
Na adolescência, quando assisti Mumu, a Vaca Metafísica, com a Tânia Alves. Na época as escolas levavam as crianças ao teatro. Lembro que assisti essa peça e fiquei encantada. Aí tive uma vida bem atrapalhada, acabei criando sozinha meus filhos, tinha de sobreviver, então fazia tudo junto. Vendi até sanduíche natural. Até que, quando trabalhei na Casa da Palavra, um ator falou ‘você se daria bem com produção’. Aí trabalhei com esse ator, o Ayrton Salvanini, durante dez anos, fazendo produção.

O que aprendeu com este ofício?
Falo que o produtor tem de ter humildade, porque, ao mesmo tempo em que ele janta com a grande estrela, ele vai distribuir cartaz, coloca flyer no carro. Já aconteceu uma vez de eu chegar no teatro e a equipe ter ido embora porque tinha mudado gestão, e eu que fui limpar o palco, os banheiros, porque ele tinha de funcionar. Então acho que o produtor, se ele não virar esquizofrênico, ele acaba tendo um exercício muito bom de vida, de ser humano.

É uma vida muito corrida, portanto...
Muito. Vou dar um curso profissionalizante agora, eu e o Marcelo Fracaro, que vai começar dia 18 de abril na Alpharrabio. Vamos fazer um curso em um formato que não tem. A aula teórica vai ser com ele e, a prática, comigo. Vamos escolher um espetáculo e produzir. Depois de seis meses, a formatura vai ser no teatro, com os alunos produzindo uma peça. E o dinheiro que der vai para eles. Este ano faço 60 anos e para produção você precisa de muita energia. Está na época de eu começar a passar isso para gente mais jovem. Chegou o momento.

O que é trabalhar com produzir, efetivamente?
Tem dois tipos de produção. Tem a executiva, que é fazer uma peça. O produtor escolhe texto, atores, arranja patrocínio forte e faz a peça. Esse produtor executivo, quando ele vai viajar, precisa chamar o produtor local. Ele vai arranjar desde a pauta do teatro, fazer a divulgação, contratar técnico, arranjar refeição, carro, passagem aérea, hotel, vai dar um jeito para o espetáculo acontecer. Eu sou a local.

E deve ser ótimo ajudar a Cultura a funcionar no Grande ABC...
Gosto muito de um título que me dei que é sacoleira cultural. Tenho sempre um ingresso na bolsa. E aí fico muito feliz quando termina a peça e eu vejo que meu cardiologista, a minha manicure, a moça que vende pastel, a porteira do prédio, está todo mundo no teatro. Eu acredito que a Cultura é um elemento transformador. Às vezes a pessoa paga tão caro para um filho estudar e não consegue entender o quanto é importante levá-lo para um bom teatro. A gente é meio disseminador de Educação e Cultura. Quando você vê uma boa peça sai sempre maior. E tem mais: o teatro pode ser literatura interpretada. Às vezes você lê um livro e não entende direito. E no teatro consegue entender. Às vezes tenho vontade de pegar megafone e pedir para as pessoas virem ver.

Quais são as dificuldades de fazer Cultura aqui na região?
A gente tem muitas dificuldades. Às vezes a pessoa não tem a mínima ideia do nosso trabalho e inventa imposto a mais para a gente pagar. Em Santo André, o nosso teatro é o mais caro da região. Custa R$ 1.500 por dia de espetáculo. Estamos pleiteando mudar isso em Santo André. Em São Bernardo não deixam divulgar porque há uma lei dos vereadores que não pode colocar faixa na rua. Há burocracia em todas as cidades. Sinto falta de um teatro acolhedor, de paixão. Você está com uma peça bacana e a pessoa, ao invés de falar, ‘meu Deus, traga essa peça logo’, fala: ‘Preencha o formulário’. Tanto faz se você vai fazer uma peça incrível ou se você vai fazer uma bobagem. A burocracia atrapalha a Cultura.

E você lançou há pouco um livro que conta um pouco dos bastidores desse trabalho, né?
Sim, no livro (A Culpa é da Produção) tento falar um pouco sobre isso. É um universo muito mágico, você tem contato com pessoas muito incríveis e faz com que 400 pessoas saiam do teatro com olhos brilhantes, alguns chorando, você ajuda a promover essa catarse... Eu sempre fico na última fileira e, enquanto todo mundo aplaude, me sinto aplaudida também, me sinto extremamente bem paga nesta hora. O teatro é mágico, é transformador e tem gente que não vê isso. Tem gente que é funcionário da Prefeitura e nunca veio ao teatro.

E tem alguma história engraçada que você conta neste livro, de bastidores?
Sim, tem muitas. Uma vez uma atriz muito famosa, que era ‘viciada’ em mocinhos, pediu para um carro ir buscá-la, precisava ser um sedan. Chamei meu genro, que tinha acabado de comprar um. Ele é trapezista, bonitão. Quando ela o viu, passou a echarpe no pescoço e falou ‘faz frio’, em francês. Só que meu genro morou na França, ele e minha filha fizeram curso de circo lá, chegaram a dar aula. Ele tem um francês muito bom e ele continuou falando com a atriz, que respondeu, sem graça, ‘só sei essa frase’. Quando ela chegou no teatro falou, incrédula: ‘Soninha, aquele motorista fala francês...’ E eu: ‘Sim, sou muito exigente com minha equipe (risos)’. Uma vez também o Raul Cortez precisava servir um frango assado em cena e não era fácil como hoje encontrar frango assado pronto. Compramos um e assamos no fogão do teatro. Só que o frango não assou direito e na hora que ele foi tirar estava tudo ensanguentado. O pessoal fingiu que não viu...

Você tem ideia de quantos espetáculos já produziu?
São 28 anos... Você produz, em média, três peças por mês, para conseguir pagar as contas. O que acontece com o teatro é que às vezes você perde dinheiro. É uma coisa de gente meio maluca. Tem peça que tenho de contratar até afinador de piano, para você ter ideia. Tudo é caro. E se não vai público? Tenho de arcar com tudo. A culpa sempre é da produção (risos). Tanto que quando chego do teatro, depois que levei o artista para jantar, para o hotel, não consigo dormir. É muita coisa, muita emoção, muito susto, mas é fantástico. Porque você aprende muito.

Desde o ano passado aconteceram alguns casos de censura à arte, inclusive em manifestações que apareciam corpos nus ou tinham conotações sexuais. O que você, como produtora cultural, pensa disso?
Eu vivi a juventude no auge do militarismo e tenho horror à censura. Aos 18 anos vi um texto que quis fazer no colégio ser censurado. Não posso crer que evoluímos tão pouco. Por incrível que pareça estou com problemas para divulgar Os Monólogos da Vagina dentro de faculdades. Se a universidade é retrógrada o que podemos esperar? E não adianta dizer que a palavra ‘vagina’ não é pornográfica. Vejo um grande retrocesso nesses últimos 40 anos. Meus filhos tiveram a oportunidade de ver tudo e isso foi fundamental para a construção do caráter deles. Cansaram de ver gente pelada nos camarins da vida e quando isso acontecia eles pediam desculpas e se afastavam. Ninguém ficou traumatizado com a visão de um corpo humano. Também viram peças com atores nus e entendiam que era uma expressão de arte e só. Estamos vivendo a ‘era dos equívocos’.

Lembra a primeira vez em que fez um espetáculo que saiu no Diário?
Lembro. Foi com a Tonia Carrero, com a peça Ela é Bárbara. E ver uma reportagem de um espetáculo que produzimos impressa é uma delícia. É o começo da realização do espetáculo. Sair no jornal é a grande referência. Porque o jornal não vai publicar qualquer coisa. Sei que vocês têm uma equipe que vai julgar o que vai sair ou não. E eu forneci muita capa para o jornal e isso para mim é incrível. O ‘saiu no Diário’ é quase um jargão.

Acha que o Diário ajuda os artistas da região?
O Diário é um grande parceiro. As matérias, os anúncios que saem, tudo sempre nos ajuda muito.

Que futuro você vislumbra para o Grande ABC e para a Cultura da região?
Não consigo ver nada muito bom hoje. Na verdade me parece uma grande vitória da mediocridade, em muitos lugares. Não consigo ver nenhuma mente brilhante em lugar nenhum. Espero que as coisas mudem, mas hoje, 2018, não vejo nada. Vejo um sofrimento muito grande. Outro dia fiquei duas horas para conseguir pegar um papel para colocar uma faixa da peça na cidade. Coisa que podia ser feito por e-mail. Temos um problema de sermos pouco ouvidos. Na verdade algumas pessoas se escondem atrás de um monte de edital, burocracia... Sinto falto de uma conversa aberta. Se tivesse de desejar uma coisa é que todos os prefeitos fossem ao teatro, conhecessem esse público que está pensando, questionando, porque quem vai ao teatro é porque tem hábito de pensar. Tem de dar valor para esse tipo de público. O teatro da cidade abriga os munícipes pensantes. 




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