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Para resguardar ferramental, há 16 dias operários ocupam Karmann

Sem receber há 3 meses, trabalhadores passam necessidade e aguardam posição da autopeça

Por Marina Teodoro
Especial para o Diário
28/05/2016 | 07:10
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Celso Luiz


O cheque especial e o cartão de crédito já estão no limite. As contas a pagar formam pilhas sobre a mesa, e as ameaças de corte de água e luz são constantes. Internet e televisão por assinatura foram canceladas faz tempo. A justificativa para o aluguel atrasado se repete mês a mês. A pensão para o filho está em haver, perigando um mandado de prisão, e até a comida em casa já está com os dias contados. Essa é a atual situação dos 330 funcionários da Karmann Ghia, em São Bernardo, que deixou de pagar em dia seus empregados desde dezembro do ano passado e, de março para cá, não depositou mais nada.

Na tentativa de assegurar seus pagamentos, há 16 dias cerca de 200 trabalhadores se revezam em três turnos de 40 pessoas cada um, a fim de manter a fábrica ocupada por 24 horas. “É a nossa garantia. Não queremos nada além de nossos direitos. Algumas empresas já chegaram a pedir o ferramental delas que está aqui na Karmann Ghia, mas não podemos entregar porque, assim, acaba com a nossa chance de ter algo para dar em troca de nossos direitos. É triste dizer isso, mas é a realidade”, afirmou um dos empregados, que pediu para não ser identificado, durante visita da equipe do Diário à fábrica para verificar as condições do acampamento.

Ocorre que, pelo fato de a Karmman Ghia ser uma estamparia e ferramentaria que presta serviços a empresas do setor automotivo, tendo a Fiat como sua maior cliente, ela detém máquinas e ferramentas em comodato, pertencentes a companhias às quais oferece seus serviços. Para evitar que essas firmas tentem retirar os itens que lhes são de direito, e assim forçar a autopeça a tomar decisão a respeito dos trabalhadores, eles estão de vigília, resguardando esses produtos como se fossem seus reféns, até que decisão seja tomada.

A maioria dos empregados está sem receber integralmente, desde março, no entanto, em dezembro do ano passado e janeiro a Karmann já não estava pagando corretamente. O depósito do 13º salário e das horas extras também não foi efetuado. O convênio médico foi cancelado há quatro meses. Em 2015, 150 funcionários foram demitidos, e estão sem receber as verbas rescisórias, algumas parceladas em 22 vezes – e nenhuma delas paga.

DRAMAS - “Humilhante”, “desesperador” e “perda de dignidade”. Essas são algumas das sensações dos empregados que estão desde o dia 13 ocupando a fábrica. Desde que a empresa parou a produção, em abril, a situação só foi piorando, chegando a ter insumos de necessidades básicas cortados, como água, energia elétrica e produtos de limpeza.

“Teve gente que já recebeu intimação e vai ser despejada porque não pagou a prestação da casa. Sabemos de um companheiro que chegou a pedir para levar a marmita, que estamos ganhando das doações para comer aqui na empresa, para casa, a fim de poder dividí-la com a família”, contou um dos operários, que igualmente solicitou sigilo.

“Tenho o financiamento da minha casa e estou com as parcelas atrasadas. Peguei empréstimo de R$ 5.000, que já acabou. O cheque especial e meu cartão de crédito já estouraram. Minha mulher está pagando o básico, mas meu medo é que minha casa vá à leilão se eu não pagar o empréstimo”, relatou o analista de processos que trabalha há 14 anos na empresa, mas também preferiu não se identificar.

“Tenho 26 anos, não pago a pensão da minha filha há três meses e estou aguardando a polícia vir atrás de mim”, declara outro companheiro. E ele não é o único que está com esse problema. Mais funcionários que se encontram nas mesmas condições não sabem como resolver essa questão judicial, já que, apesar de não receber salário integral desde março, em suas carteiras de trabalho eles ainda constam como empregados da Karmann Ghia.

Os discursos se repetem. Muitos estão recorrendo a parentes, amigos e até às doações de alimentos, como café, leite, arroz, feijão, e de fraldas, que estão sendo feitas pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pela vizinhança do entorno da fábrica e por familiares dos trabalhadores. “Estamos todos na mesma. Cortei o transporte escolar do meu filho e tudo que dá para viver sem. Minha mulher está segurando as pontas em casa, mas, se não fossem ela e minha sogra, não sei o que seria da minha família”, desabafou um soldador de 38 anos, que está há cinco na companhia.

Mas nem sempre dá para contar com a compreensão em casa. “Minha mulher no começo entendia mas, agora, está ficando cada vez mais insustentável. As contas chegam. Ela não entende por que não largamos aqui”, disse outro trabalhador. O medo é deixar para trás os direitos, como salários e verbas rescisórias, sem contar que, sem a carteira de trabalho, não dá para fazer a homologação.

O jeito está sendo contar com o companheirismo dos próprios empregados e de outros trabalhadores. Muitos estão se ajudando com a carona, já que, sem dinheiro, a locomoção até a empresa fica comprometida. “Já cheguei a pedir carona para o motorista do ônibus. Muitos entendem, outros não. Quando isso acontece, o jeito é vir a pé”, citou outro profissional.

Os trabalhadores se dividem entre limpeza, manutenção da fábrica e cozinha. Mas o ócio acaba sendo consequência ruim. “A gente fica pensando no pior. Sendo que o que queremos é ter a garantia do mínimo. Trabalhamos e queremos receber por isso, apenas.”


Firma sofre com problemas judiciais

Além de ter sido fortemente atingida pela crise econômica, a Karmann Ghia segue há dois anos com problemas judiciais que envolvem sua posse. Em 2014, a autopeça foi comprada pela empresária Maristela Nardini, que pagou apenas uma das 52 parcelas de seu valor de venda, de R$ 17,8 milhões. Diante da situação, o então proprietário, Eudes Maria Regnier Pedro José de Orleans e Bragança, que é trineto do imperador Dom Pedro II e bisneto da Princesa Isabel, pediu reintegração da posse. Mas nada aconteceu até o momento. Nem o pagamento nem a reintegração.

Recentemente, Maristela ingressou com ação pedindo a revisão do preço do contrato, sob justificativa de que o Grupo ILP, que configurava como proprietário até 2014 e que é ligado a dom Eudes, fez, enquanto estava à frente da companhia, transações com empresas deficitárias. Uma delas é a Quasar, de Mauá, que está em recuperação judicial. Tais negócios geraram dívida de R$ 21,9 milhões. O juiz, entretanto, negou o pedido de Maristela e determinou que ela pagasse o restante do valor.

Quanto aos trabalhadores, eles seguem sem informações e sem seus pagamentos. O passivo da empresa atinge R$ 300 milhões.

De acordo com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o acampamento continua por período indeterminado. Nos próximos dias, a entidade deverá se reunir com os operários para a definição dos próximos passos.

Dentre as dúvidas que pairam sobre os trabalhadores, a possibilidade de abertura de falência é a que mais preocupa. Para eles, essa seria maneira de a empresa ser fatiada, vendendo seus equipamentos e o terreno. “Nosso medo é de não receber nossos direitos”, afirma um dos funcionários, 48 anos, que atua na área de logística e está há 15 e meio na Karmann Ghia.

Para os funcionários, o ideal seria que um dos donos assumisse a empresa, de maneira idônea, para que eles voltassem a trabalhar normalmente. “A venda seria o ideal, mas desde que seja para pessoas de bem, e não para aquelas que só pensam nos seus bens. Chega desses investidores agiotas”, opinou um dos companheiros.

Em entrevista ao Diário no início do mês, a diretora da Karmann Ghia Mônica Marani afirmou que já foi assinado contrato com a empresa Gitan Incorporação e Construção, que, segundo a Jucesp (Junta Comercial do Estado de São Paulo), possui capital no valor de R$ 1 milhão e é sediada na Avenida das Nações Unidas, no bairro do Brooklin, em São Paulo.

Mônica esclarece, entretanto, que a fábrica não será vendida, como havia sido informado pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. “Trata-se somente de um investidor”, garantiu, sem mencionar valores.  




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