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O balé que supera as diferenças
Illenia Negrin
Do Diário do Grande ABC
24/07/2005 | 08:02
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Uma jovem bailarina de São Caetano subverteu a teoria do quase, que rege a vida de gente um tanto acomodada. Fernanda Bianchini, 26 anos, usou a fé que tem no impossível para transformar o cotidiano de meninas cegas, antes condenadas a serem quase boas, quase eficientes. Há dez anos, é professora de balé de portadoras de deficiência e desenvolveu um método único de ensino. O resultado: garotas que nunca enxergaram se equilibram em sapatilhas de ponta com naturalidade, graça, leveza, e se movimentam no palco com sincronia e agilidade comoventes. Não são quase bailarinas. São bailarinas de fato.

O trabalho de Fernanda, que também é mestre em Fisioterapia, ganhou projeção nacional com a novela global América, que retrata o universo dos portadores de deficiência visual. Ela e seu grupo de bailarinas já se apresentaram também no Domingão do Faustão e levaram o público – da platéia e de casa – às lágrimas. "Há dez anos eu digo que um cego pode dançar. Mas, quando a Glória Perez diz, tem outro impacto." Justo reconhecimento à dedicação de Fernanda, que iniciou as aulas também às cegas e de tanto pesquisar conseguiu reinventar o balé clássico, arte a qual se dedica desde os três anos de idade. É, a moça já nasceu de sapatilhas.

"Definitivamente, a melhor coisa que o balé me trouxe foram essas meninas." Fernanda começou a ensinar balé, assim, por acaso. Tinha 15 anos e freqüentava o Instituto Padre Chico, para cegos, com os pais. Um dia, uma das freiras perguntou se era possível que uma menina cega aprendesse a dançar. Fernanda disse que "achava" que sim. Quem poderia ter certeza?

As velhas professoras de balé desaconselharam a aluna. "Por incrível que pareça, enfrentei muito, muito preconceito de pessoas intimamente ligadas ao balé. Muita gente me disse que seria impossível ensinar meninas cegas porque o balé se aprende ao se olhar outra pessoa praticando." Ainda bem que o pai de Fernanda, que por sorte nunca dançou balé clássico, deu o estímulo que faltava. "Ele disse que os maiores desafios da vida nos trazem os maiores ensinamentos. E foi assim mesmo."

Como as bailarinas de Fernanda não podiam imitá-la, ela pedia que tocassem em seu corpo para identificar a posição de seus pés, pernas e mãos. Ensinava o nome dos passos em francês, depois traduzia. As mãos das alunas fizeram as vezes dos olhos. E outros elementos foram sendo introduzidos para facilitar o aprendizado. Os braços precisavam de movimentos mais suaves. "O que é "mais suave? Era difícil explicar para elas." Foi só colocar folhas de palmeira grudadas no corpo, e pedir que batessem as "asas" para sentirem a diferença. Mesmo sem nunca terem visto o vôo de um pássaro, as meninas aprenderam a voar.

Há um ano e meio, Fernanda inaugurou a Associação de Balé e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, na Vila Mariana, em São Paulo. Atende a mais de 90 deficientes, de graça, e dá aulas também de música e teatro. Professora exigente, cobra o máximo das bailarinas. "Não aceito qualquer coisa. E nem adianta reclamar de bolha nos pés."

Durante as apresentações – que agora são aplaudidas, mas antes eram barradas nos festivais pelo preconceito –, Fernanda fica na coxia, ditando os movimentos. "Pra direita, pra esquerda, pra trás, pra frente", cochicha a professora, que se transformou nos olhos de suas bailarinas. Mas elas também lhe emprestaram seus olhos, "mais bonitos e justos". No fim do espetáculo, todo mundo sai diferente, melhor, mais humano. E com a sensação de que somos nós quem não enxergamos direito.




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