Política Titulo
Tortorello divide São Caetano em duas partes: antes e depois do seu governo
Daniel Lima
Do Diário do Grande ABC
18/12/2004 | 13:00
Compartilhar notícia


São Caetano não será mais a mesma sem a presença física de Luiz Tortorello. Provavelmente não o seria também em vida, embora com menos intensidade, durante os quatro anos de mandato de José Auricchio Júnior. Com Tortorello na reserva imediata do comando do Paço de São Caetano, a institucionalidade do município de melhor qualidade de vida do país já seria diferente dos últimos oito anos. Nesse período ele esteve soberano no gabinete proporcionalmente mais rico do poder público do Grande ABC. Com a morte de Luiz Tortorello, tudo indica que um rearranjo institucional, político e partidário será inexorável. Aí é que todos poderão compreender a exata dimensão do legado do prefeito.

Em princípio, independentemente do que venha a se tornar São Caetano, a morte de Luiz Tortorello significa o fim de um ciclo sobre o qual, para o bem ou para o mal, a importância do prefeito é imensurável. Goste-se ou não de Tortorello, o fato é que ele deixou marcas indeléveis. O temperamento explosivo, os ataques de estrelismo, o enclausuramento municipalista, os arroubos de autoritarismo, tudo isso e muito mais provavelmente jamais serão apontados como contrapontos de uma personalidade fértil na capacidade de criar fatos, de tornar o dia seguinte diferente do dia anterior, de lançar-se nos braços de um povo que conquistou exatamente porque a empatia pública diferia do humor nem sempre agradável dos encontros privados.

Dualidade – Tortorello era um homem dualístico. Encantava em público, irritava no privado. Trocava o sorriso aberto, companheiro e amistoso dos encontros com a população pela dureza dos gestos e pelo histrionismo de reações de gabinete. Sua voz metálica, impositiva, afinada nos tempos em que atuava como juiz de Direito, prevalecia em qualquer ambiente de que participasse. Quando no comando, gerava respeito, temor e silêncio dos interlocutores. Quando eventualmente em situação de figurante hierárquico, causava desconforto porque não tinha por costume aceitar pontos de vista que o contrariassem.

Governar São Caetano durante 12 anos – oito dos quais em mandatos sequenciais – e, mais que isso, reduzir a quase pó o poder de articulação de seu criador, o também triprefeito Walter Braido, só poderiam ser mesmo uma obra de alguém ousado, destemido, intrépido, suficientemente audacioso para, num primeiro ciclo, juntar-se às forças tradicionais da política local e depois, gradualmente, constituir seu próprio exército para alcançar absoluto controle institucional.

A intempestuosidade dos gestos era apenas aparentemente desconexa. Tortorello amarrava bem as pontas do novelo estratégico. Verdade que os passos táticos causavam estragos, mas nada que o impedisse de atingir as metas. Principalmente em São Caetano. Conhecia cada palmo do que se convencionou chamar de governabilidade. Tortorello era a própria governabilidade de São Caetano. Era o eixo em torno do qual todos gravitavam. O humor de Tortorello ao adentrar o Paço Municipal decidia o ambiente que se respiraria no resto do dia.

A biografia político-administrativa de Luiz Tortorello tem tentáculos contraditórios, reflexo de sua própria personalidade.

A São Caetano que ganhou as manchetes das principais mídias nacionais e mesmo internacionais desde 1997, quando ele assumiu a Prefeitura, não é uma São Caetano diferente da do passado. Tortorello recebeu herança sociológica e urbanística pronta. São Caetano é uma construção de décadas.

História explica – Bafejada pela cultura superior de um povo predominantemente de imigrantes, embalada pelos limites seletivos de um território de apenas 15 quilômetros quadrados e por uma industrialização cujos recursos tributários asseguraram investimentos públicos que a instalaram a léguas de distância de qualidade de vida de vizinhos de maior porte e de contrastes sociais acentuados, São Caetano há muito tempo é uma licença poética na Região Metropolitana de São Paulo.

A virtude de Luiz Tortorello, e nesse ponto o senso de oportunismo se manifestou com brilho típico de quem jamais se conformou com o prato feito, é que a São Caetano construída ao longo de décadas era tão verdadeira quanto a de seus oito anos de mandato. A diferença é que Tortorello a transformou em extraordinária verdade. Deu-lhe polimento urbanístico com obras físicas em que a estética transcendia o conservadorismo de uma população ávida por novidades que lustrassem a própria auto-estima.

Com a mais generosa proporção de recursos arrecadados por habitantes no Estado de São Paulo, perdendo apenas para a nababesca Paulínia, São Caetano é um convite ao banqueteamento político-administrativo. Por mais demandas que se sobreponham, jamais um bom administrador público perderá horas de sono quando se trata de gerenciar São Caetano. E Luiz Tortorello soube como poucos antecessores associar governança qualificada do ponto de vista orçamentário com imagem institucional.

Os prêmios conquistados por São Caetano nos últimos anos, tanto no âmbito fiscal quanto de indicadores de qualidade de vida, coincidiram com o modismo de ranqueamentos. No passado, até porque os recursos não passavam pelo crivo da Lei de Responsabilidade Fiscal, a gestão pública era rigorosamente uma caixa preta. Mais que isso: os dados orçamentários eram quase que propriedade do prefeito de plantão. As conseqüências de eventuais despautérios não conheciam penalidades como as previstas pela legislação atual. Governar municípios e Estados brasileiros antes da LRF era um mar de facilidades ao abuso sem risco.

Prêmios diversos – A disseminação da informática e, na seqüência, da Internet, democratizou a comunicação. Principalmente ao permitir facilidades de captação de informações estatísticas que, individualizadas ou cruzadas com outros indicadores, transformaram em ferramental de marketing o que no passado se resumia a números inanimados. A tecnologia deu vida aos numerais. Não faltam alquimistas que impõem acrobacias semânticas para locupletação estatística.

O individualismo de Luiz Tortorello contribuiu para o anestesiamento de qualquer tentativa de consolidação de uma rede de cooperação estratégica entre os municípios do Grande ABC. O discurso de uma região integracionista que o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos esgrimia com rompantes de ufanismo e que encontrava em Celso Daniel a estrela mais expressiva foi simplesmente ignorado por Luiz Tortorello.

Apertadíssimo pelos números orçamentários de uma Prefeitura em dificuldades financeiras quando assumiu o cargo em janeiro de 1997, Tortorello tratou de agir com rapidez em vez de chorar sobre o leite derramado dos repasses decadentes do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). O que fez Luiz Tortorello para retirar São Caetano do aperto financeiro? A cidade virou uma nova Barueri, com o rebaixamento radical de alíquotas do ISS (Imposto Sobre Serviços).

Trouxe da capital tão próxima grandes corporações prestadoras de serviços em informática, em finanças, em consórcios. Enquanto o prefeito Celso Pitta engrossava o coro da integração tributária metropolitana e gritava contra a guerra fiscal do ISS, Tortorello simplesmente implantava medidas legais. Mas jamais as admitiu publicamente como uma rasteira nos prefeitos do Grande ABC. E se irritava se o interlocutor ousasse fazer menção ao caráter belicista de atração de empresas pelo viés do redutor de custo tributário. Tratava-se, segundo sua subjetividade interpretativa, de estratégia de desenvolvimento econômico.  

Solitarismo – Ao romper qualquer possibilidade de compartilhar planejamento regional no Consórcio de Prefeitos, na Câmara Regional e também na Agência de Desenvolvimento Econômico, Luiz Tortorello se afastou deliberadamente do jogo integracionista. Tanto que foram poucas as vezes em que participou de reuniões do Consórcio de Prefeitos. Exceto quando, finalmente, decidiu assumir a presidência rotativa durante um ano. Mesmo assim, o mandato foi tímido, como dos antecessores e sucessores. Nesse ponto o prefeito de São Caetano contava com ampla razão: o organismo burocrático demais era um iceberg no caminho de alguém, como ele, que parecia correr contra o tempo.

O estoque de análise sobre os anos em que particularmente São Caetano foi sacudida pela força da natureza chamada Luiz Olinto Tortorello ainda contemplará muitos capítulos. As seguidas conquistas nos Jogos Abertos do Interior são marca registrada de dirigente público que se sensibilizava de fato com a força magnetizadora do esporte. Já o sucesso do São Caetano nos últimos anos, depois que ganhou gestão profissional, não tem qualquer relação direta com perfil de esportista do prefeito. Mais que isso: somente depois de sair da área de domínio extremamente passional de Tortorello o futebol profissional de São Caetano resplandeceu para o mundo inteiro aplaudir. Nesse período ele foi apenas um torcedor privilegiado e especial. As conquistas, entretanto, foram capitalizadas como mais uma obra de engenharia de competência.

O choque da retirada de cena de Luiz Tortorello provavelmente seja inigualável na história de São Caetano. O município que se preparou para o afastamento constitucional do prefeito descobre-se enviuvado com o desaparecimento de alguém controverso, contraditório e polêmico. Uma imagem que contrasta em relação ao conservadorismo de um município esculpido com a operosidade secular de europeus, principalmente italianos, origem de um Tortorello que veio do interior de São Paulo e se instalou em São Caetano como legítimo filho da terra. Nada surpreendente para quem tinha o poder da sedução popular.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;