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Pensar não dá multa!
Por Creso Peixoto
30/09/2017 | 07:00
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 São 6:42h. O trânsito para de repente. Uma freada um pouco abrupta. Não são raras as freadas assim nas rodovias. Guincho e funilaria sucedem, não raro. Agora, anda devagar. Um congestionamento anormal nesta hora da manhã.
– Será que é alguma obra na estrada? Pensara. Antigamente, quando falássemos sozinhos, dizíamos que conversávamos com botões...
– Talvez não! Ando mais um pouquinho. A solidão é estranha quando se guia milhares de quilômetros por ano para trabalhar, tendo ao lado multidões fazendo a mesma coisa. Sono? Rádio, café ou até vento de janela aberta em fria madrugada. O café? Esposa levanta religiosamente para passar o pretinho. Uma garrafinha térmica entre bancos da frente. Não deveria tomar em movimento, mas acabo não parando. Sei de meu cuidado para não distrair do pára-brisa, mas não deveria proceder assim. O fato de ter guiado mais de 1,5 milhão de quilômetros na vida, praticamente todos anotados em livro de bordo, indica que tenho sido bom motorista. Mas não garante a segurança futura. Melhorar a forma de guiar, evitando os erros do passado, uma boa conduta.
Viro olhos para um carro que insiste cortar minha frente. Abro espaço, evitando irritação. Aprendera, a duras penas, que a melhor direção é a inteligente, quando fazemos de tudo para evitar o estresse com parceiros de asfalto. Mesmo quando estes estejam errados. Não sou xerife. A vitória deles na ultrapassagem ou no espaço desejado à minha frente se iguala à vitória do estresse quase nulo. Agora, freio suavemente, enquanto me lembro de cena da meninice. Tentava pular a janela de meu quarto, que trancara à chave, enquanto mamãe a forçava.
– Abra, Cresinho! Abra! Precisa tomar a injeção! Mesmo com febre, preferiria pular da altura do parapeito à calçada lateral da casa. Afinal, rua era o meu esconderijo predileto.
Não queria estudar? Evitava apanhar ou ainda ver agulhas ameaçadoras, por mais que papai médico insistisse que era necessário. Rua, a solução. A tempo, apanhar eram doces palmadas devidamente suavizadas pelas calças. Ajudaram a me tornar responsável.
– Devem ser veículos policiais ou de socorro! Vejo luzes piscando à frente. Respiro fundo, afinal, começo a achar que é acidente. E grave.
Mamãe conseguiu me pegar antes que pulasse. A febre tirara minhas forças. Ajudara em minha recuperação.
Vejo um veículo parado. Amassado, mas não muito. Na reduzida luz do dia que começava, uma superfície brilhante mais à frente.
– Meu Deus! Murmurara. Um saco longo ao lado do acostamento. Em um dos lados, duas pontas em formato de vê denunciavam. Já não havia mais motivo para a sirene da ambulância tocar.
Uma moto em pé, guidão e tanques amassados. O trânsito volta a fluir.
A via Anhanguera, nos seus mais de 450 quilômetros de extensão, virou avenida, nos trechos em que cinge grandes cidades. Motos circulam em verdadeiro balé entre carros. Os tão conhecidos corredores entre filas de veículos praticamente parados são armadilhas à vida que corre por um risco. Em levantamento da Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados), foram quase 70 mil acidentes de trânsito em 2016 com custo de aproximadamente R$ 70 mil por evento, em uma infeliz coincidência numérica. Quanto a mortes em rodovias, a moto foi registrada como o veículo de transporte em 29% dos casos. Em cidades, a porcentagem vai a 35%.
Trânsito passa a fluir bem, tal como fluem minhas lembranças. Pé no chão? A curiosa sequência de linhas curtas e paralelas em um papel no banco ao lado denuncia um código de barras. Conta a pagar.
Pensar não dá multa. O risco de se distrair já é outro problema. Estaciono o carro defronte a agência bancária. Pagar conta e, depois, dar aulas. Nada mais cotidiano, menos para aqueles que devem, agora, estar sabendo da perda de seu querido, em mais uma já tão comum tragédia do dia a dia. Lamento.




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