Cotidiano Titulo COTIDIANO
Seu Nestor vai às compras
Rodolfo de Souza
27/09/2018 | 07:00
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Seu Nestor, sempre que precisa, vai ao supermercado. D.Dalva, sua senhora, a que cuida do lar, não deixa de acompanhá-lo. Fala, sempre que indagada, da sua obrigação em estar com o marido. Não porque o considere incapaz de unir qualidade e preço na hora de comprar, mas porque... Porque sempre foi assim, ora! Porque dividiram uma vida inteira até se tornarem parte um do outro.

O carrinho da loja é peça essencial, mesmo que a compra seja pequena. Seu Nestor, que já batera os 85, tem certa dificuldade em caminhar sem o equipamento gentilmente cedido pelo estabelecimento. Está arcado, o homem, situação que lhe dificulta um bocado a vida.

D.Dalva, assim como seu Nestor, também sofre desse mal. Sua coluna apresenta uma envergadura qualquer coisa mais acentuada do que se considera normal a partir de determinada idade. Mas ela anda bem, a despeito disso.

Seu Nestor, entretanto, não teve a mesma sorte. Suas costas dobraram até atingirem um ângulo reto, condição que, por vezes, o leva a esquecer-se da cor do céu. Mas ele não se dá por vencido, mesmo quando tem que caminhar sem o auxílio do valioso carrinho de supermercado. Seus passos, muito curtos, tornam inviável qualquer intenção de percorrer distância que ultrapasse uns poucos metros.

Mas seu Nestor dirige, vai ao supermercado e para qualquer canto. Sujeito duro na queda, este. Assisto, inclusive, à sequência de movimentos que realiza com extrema dificuldade após guardar as compras no porta-malas e deixar o carrinho a um canto perto do muro, de forma que não atrapalhe ninguém. Daqui de onde estou observo-o, estarrecido, e um torvelinho de pensamentos tomam de assalto a mente inquieta deste cronista maravilhado com aquele ser humano. Verifico, inclusive, que não leva acompanhante a tiracolo, a não ser a velha companheira. Surpreende e comove, pois, aquele que venceu o mal, do qual fora acometido um dia, e agora exibe força e determinação, andando com seus passinhos bem curtinhos, apoiando-se nos veículos enfileirados. Mas é complicada a tarefa de entrar no seu carro. Mesmo assim, com movimentos lentos e imprecisos, senta-se no banco. Muito tempo se passa, e muita careta faz seu Nestor para conseguir finalmente se ajeitar. 

Boquiaberto, eu aguardo ali o desfecho do episódio. Cheguei a apostar que não conseguiria. Mas como duvidar de um homem com aquela garra toda, embora combalido pela doença?

Vencida a difícil missão de entrar no carro, todavia, capricho do destino ou das mulheres, não sei bem, D.Dalva, após constatar que se esquecera de guardar no porta-malas o pote de sorvete, proclama para céus e infernos que lá é o seu lugar. A complicadíssima equação que a motivou a levar o sorvete para o porta-malas naquele momento, a ciência ainda não dispõe de meios para montar, muito menos explicar.

Uma vez lá, no entanto, ela verifica que a tampa está trancada.

Seu Nestor, que também tem lá os seus caprichos, ao invés de dar a chave à sua senhora para que guarde o diabo do sorvete, resolve, por sua conta e risco, executar a complicada manobra de sair do carro. Sim, ele faz aquilo que eu, mero expectador do circunstancial e do pitoresco, duvidei que fizesse: marido dedicado que é, torna a empreender viagem de volta à parte de trás do carro, apoiando-se nas laterais metálicas, caminhando com passinhos curtos e incertos. Tudo para abrir a tampa e, com seu gesto, ver feliz a patroa que muito sofreria com a água da embalagem escorrendo no interior do carro.
 




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