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Biografia revela um novo Eça de Queirós
Por João Marcos Coelho
Especial para o Diário
08/07/2001 | 18:05
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Só entrava no quarto para escrever pisando com o pé direito; passava o dia todo fechando as janelas com medo das correntes de ar; só escrevia em papel almaço que ele próprio comprava, numa pequena loja. Supersticioso, não dispensava “bentinhos” ao pescoço e tinha ritos especiais sobre a forma de dispor a roupa: colocava os punhos da camisa sobre uma mesa, pela ordem em que os tinha usado, dispondo as botas à porta, para que o criado as limpasse de manhã e, de novo, colocasse-as no lugar, ordenadamente emparelhadas.

Estamos falando de José Maria Eça de Queirós, escritor português de finíssimo trato, um dos maiores do século XIX, cujo centenário, transcorrido no ano passado, foi mais comemorado – editorialmente falando – em Portugal do que no Brasil. Mas, em compensação, bastou uma minissérie global, Os Maias, para recolocá-lo na boca do público em geral. Pelo menos quatro editoras brasileiras lançaram Os Maias e muito se falou sobre o horário incerto, tarde da noite, que teria provocado a baixa audiência.

O maior tributo a Eça, no entanto, acaba de chegar às livrarias brasileiras, sendo que já curte um sucesso enorme de vendas em Portugal, mais de 11 mil exemplares. Trata-se da biografia Eça – Vida e Obra de José Maria Eça de Queirós (Record, 504 págs., R$ 45), escrita pela socióloga portuguesa Maria Filomena Mónica, que em excelente hora a editora Record coloca em circulação em português brasileiro.

A descrição minuciosa do primeiro parágrafo, pinçada do livro de Filomena, mostra sua dedicação ao garimpo de informações sobre o autor do Crime do Padre Amaro, Primo Basílio e A Cidade e as Serras. Dos hábitos e manias pessoais aos desencantos amorosos, passando pelas noites sem fim nos braços de “mil espanholas”, Filomena nada deixa escapar. E com uma qualidade extra: como não é crítica literária, mas sim socióloga, ela sempre encaixa o roteiro da vida de Eça no contexto cultural, político e econômico não só de Portugal, mas dos países diversos nos quais ele viveu. E, depois, ao contrário dos biógrafos em geral, não procura preencher com sua imaginação os vazios que a ausência de documentos propicia. Assim, não há nenhuma suposição, só narração de fatos, alicerçados em documentação de época.

Aliás, por falar em documentação, o novo retrato que Filomena compõe de Eça constrói-se basicamente de sua intensa atividade jornalística – profissão que jamais abandonou, desde o primeiro emprego, quando, aos 21 anos e sozinho, fazia um jornal em Évora, a mando do big boss local.

Em todo caso, para quem conhece a trama de Os Maias e/ou assistiu à minissérie, lá vai algo que parece mais do que uma coincidência tipo vida-imita-arte, ou vice-versa. Eça, como o personagem Carlos Eduardo da Maia, foi criado pelo avô e, filho de mãe solteira, só foi morar com os pais depois dos 20 anos de idade. Maria Filomena não autoriza nenhum exerciciozinho de psicanálise barata, mas dá a perceber que a hipótese é saborosa. Some-se a isso o fato de que ela escreve como quem fala, e com frases curtas e objetivas. Está aí o segredo do sucesso de vendas em Portugal. E a certeza de horas deliciosas investidas na leitura desta excelente biografia.




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