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Crianças 'velhas' lotam os abrigos
Por Illenia Negrin
Do Diário do Grande ABC
11/07/2005 | 08:23
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Os abrigos da região que acolhem menores em situação de risco se transformaram em moradia para crianças "velhas", ao contrário do que determina o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). A situação de abrigamento, que pelo estatuto deve ser provisória, acaba se estendendo, em muitos casos, até o jovem completar 18 anos. Isso porque a grande maioria dos abrigados não preenchem as exigências dos casais interessados em adoção.

Os números não são exatos, mas estima-se que, na região, pelo menos 700 crianças e adolescentes vivam em abrigos municipais e lares mantidos por entidades assistenciais. Expostas a situações de risco, que vão de desnutrição a agressões físicas, passando pela negligência, abandono, espancamento e abuso sexual, são retiradas de casa. Para garantir a segurança e integridade dos menores, a Justiça determina o afastamento provisório. A idéia é que o vínculo com a família possa ser recuperado e a criança reintegrada. Mas nem sempre a reestruturação dos lares acontece.

Quando voltar para casa já não é possível, viver com uma família substituta é a orientação do estatuto para que se promova o bem-estar das crianças e adolescentes. É aí que começa a batalha. "Todo mundo quer adotar crianças com idade entre seis meses e um ano. Só bebês são adotados com facilidade, e há uma longa fila de espera por eles", avalia o juiz da Vara da Infância e da Juventude de São Bernardo, José Carlos Ditommaso.

O juiz classifica como "extremamente cruel" a preferência dos casais por bebês. Na prática, crianças de cinco anos são, quem diria, velhas. Deixadas de lado tanto quanto os adolescentes abrigados. "As pessoas vêem essas crianças como se fossem um problema. Cheia de vícios e hábitos, difíceis de educar. Elas se esquecem que são pequenos seres humanos que precisam de uma família para se tornarem grandes homens."

A presidente do Instituto Castanheira, Luciana Hubner, entidade que mantém o serviço de abrigamento de menores em Santo André, enfrenta todos os dias uma briga contra o relógio. "O pior lugar para uma criança estar é o abrigo, ainda que as equipes sejam excelentes. Elas podem ter vivido situações horríveis em casa, mas sempre esperam voltar. Nunca escutei de uma criança 'não quero voltar para casa'. Essa, sem dúvida é a parte mais triste do nosso trabalho. Porque muitas crescem e, realmente, não terão para onde ir."

Casa-lar – Diante dos casos em que a condição do abrigamento se tornou irreversível, prefeituras remodelaram os locais que prestam assistência. Em São Bernardo e Santo André, por exemplo, foram criadas as casas-lar, unidades que acolhem grupos menores, formados principalmente por adolescentes.

Inaugurada na semana passada em parceria com a Associação Metodista de Assistência Social, o terceiro abrigo "residencial" de São Bernardo vai acolher crianças de até 12 anos. Juntas sob o mesmo teto, como irmãos, e cuidadas por uma mãe-social, que também mora na casa. "É importante que a rotina delas seja a mesma de qualquer outra criança. Elas freqüentam a escola normalmente, passeiam, brincam, ajudam na organização do ambiente. A filosofia é que elas possam restabelecer todos os laços comunitários. Só assim asseguramos um pouco mais de conforto e garantimos que tenham um desenvolvimento pleno", explica a presidente da Fundação Criança, Marlene Zola.

Em Santo André, o Instituto Castanheira se prepara para inaugurar a quinta casa-lar esta semana, e a previsão é de abrir mais uma em agosto. "Nós trabalhamos conforme a demanda. Se a procura aumenta, readequamos nossos espaços", explica Luciana Hubner. Em uma das casas alugadas pela Prefeitura, seis garotas dividem o espaço com três meninos. Quem comanda a "família" é Zinalva Rodrigues Dias, responsável por manter a ordem e a disciplina no ambiente. Distribui conselhos, separa as discussões, vai às reuniões de conselho escolar, dá bronca quando precisa e carinho. "Minha função é mesmo fazer às vezes de uma mãe. Suprir as carências deles, na medida do possível. E, claro, impor limites. Porque senão eles derrubam a casa", conta, bem-humorada.

No sobrado do jardim Estela, são três quartos: um para Zinalva, um para as meninas e o outro para os garotos. Sara, de 12 anos, é uma das moradoras. Tímida, parece não gostar muito de falar sobre abandono. Ela engrossa as estatísticas de gente que cresceu no abrigo e nunca conheceu outra realidade. Está desde os dois anos longe da mãe. A irmã mais nova, de 10 anos, foi adotada e as duas perderam contato. "Faz muito tempo que não sei dela".

As companheiras de Sara são mais falantes. Dalila, de 13 anos, passou parte da infância com a família. Tem mais dois irmãos: um vive com o tio e o outro com o padrasto. Também não recebe muito a visita dos parentes. "É bom morar aqui. Mas não é como morar em casa. É difícil ter de conviver com pessoas que a gente não conhece direito." Estudante da 6ªsérie do ensino fundamental, às vezes leva amigos da escola para estudar em casa. "Mas tudo tem que ser controlado. Imagina se todos eles quiserem trazer os amigos, todos os dias? Aí tem que negociar", alerta Zinalva, a mãe-social.

Carol tem 15 anos e chegou no início do ano. O pai bebia muito e batia na mãe e nos irmãos. Teve de sair de casa. "Meu avô vem sempre me visitar, meus irmãos também. Quase todo domingo." Carol e Dalila têm namorados. Os garotos moram em outra casa-lar, e Zinalva, claro, fica de olho. "O meu namorado pode vir aqui de terça-feira. E o da Carol, às quartas-feiras. Das 17h às 21h. E no sábado a gente também se encontra", conta Dalila.

Os meninos falam menos. Bem menos. O mais novo deles, Wellington, 12 anos, diz que as meninas implicam com ele. "Sempre sobra pra mim", resmunga o caçula. Ainda que na casa se crie um ambiente muito parecido com o de qualquer outro núcleo familiar, o fato de os integrantes não terem nenhum parentesco implica naqueles chatos problemas de convivência. É quando se lembram que estão num abrigo. "Na verdade, esses jovens não tiveram escolha. Não optaram por viver juntos. A maioria dos problemas são contornáveis. Mas ainda assim é muito difícil se sentir em casa", afirma a presidente do Instituto Castanheira.




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