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Maurício Pestana: ‘A cultura negra vive cenário de terra arrasada’
Por Daniel Tossato
Do Diário do Grande ABC
18/11/2019 | 07:00
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Divulgação


Um dos raros negros a se estabelecer no mercado de artes em São Paulo, Mauricio Pestana lamenta a falta de apoio público para que haja melhor distribuição de oportunidades em todos os segmentos da sociedade. Ex-secretário de Igualdade Racial da prefeitura da Capital, jornalista e cartunista há 35 anos, ele vê o universo das artes elitizado e, portanto, preconceituoso, e mostra preocupação com os passos dados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL). “A cultura negra sempre foi relegada à cultura popular ou à cultura de menor expressão. A cultura negra nunca foi destino de grandes recursos, seja pela Lei Rouanet, seja por outros fundos de cultura.”

Como o senhor se interessou pelo universo das artes e como passou a viver desse ofício?

Eu desenho desde criança, passei a me interessar muito mais na adolescência porque eu comecei a ter contatos com mais desenhistas, com pessoas que eram profissionais. Mas, fundamentalmente, quando eu comecei a trabalhar como cartunista, no fim dos anos 1980, na luta contra a ditadura militar, contra o último regime, que foi do (João Batista) Figueiredo. Eu fui trabalhar na redação da revista IstoÉ. Em paralelo à revista IstoÉ, comecei a fazer meus desenhos para O Pasquim. Em seguida, virei cartunista do Diário do Grande ABC, o primeiro jornal que exerci a profissão como cartunista de fato. Eu me orgulho muito em ter trabalhado quase quatro anos no Diário.

Como estar perto de repórteres desses veículos de comunicação o ajudou a compreender a arte?

A profissão de cartunista proporciona experiências grandes de transitar entre a comunicação e a arte, porque o cartunista trabalha com a arte, mas ele também trabalha com a comunicação, ele é um jornalista do cotidiano. Ele transforma aquilo que muitas vezes não dá para resumir ou enquadrar num texto, mas sim em um desenho. Então, a profissão de cartunista é uma profissão de jornalista e ela se completa na outra, uma ajuda a outra, a entender a arte, pois a arte você entende como escrever, e escrever também é uma arte, são coisas que se completam.

Como o senhor vê o espaço para o negro nas artes no País?

O espaço nas artes, assim como todos os outros espaços, é desde sempre privilegiado na sociedade. Então, quando falamos de comunicação, de arte, de política, de educação, são áreas estratégicas e onde são exercidos os poderes. E nós, negros, estamos distantes delas, não controlamos os meios de produção ou temos ação mais efetiva. As artes não fogem disso, a não ser nas artes quando se tornam extremamente populares, que elas não exercem muito poder de decisão, de ação. Nesse espaço reduzido o negro pode fazer. Por exemplo, o negro pode ser o dançarino, mas ele jamais pode ser um produtor ou alguém que esteja dirigindo o espetáculo. Onde tem o poder você não tem negros. Veja o fenômeno que está acontecendo nas escolas de samba de São Paulo e Rio de Janeiro. Você até pode ser um dançarino ou um folião, mas você nunca é um presidente da escola de samba, a maior parte é presidida por homens e brancos. Há alguns espaços que são presididos por mulheres, mas em todas as escolas do primeiro grupo existe apenas uma mulher negra presidindo a escola (Luciana Silva, à frente da Tom Maior, do grupo especial do Carnaval paulistano), ou seja, os espaços de poder a gente não encontra, inclusive nas artes.

O que representa o mês da consciência negra?

Ele é muito importante e marcante, pois foi uma luta histórica, um dia de Zumbi dos Palmares, 20 de novembro. Zumbi hoje é um herói da América Latina e ele só é este herói por causa da luta do povo negro brasileiro. É muito significativo para nós. Bom que a sociedade referencia o Zumbi dos Palmares, porque, na realidade, é um único herói que começou de baixo para cima, não foi um herói que os grandes historiadores ou os governos impuseram, como outros nomes que temos no Brasil. Ele foi uma luta do movimento negro que quis se contrapor ao 13 de maio (de 1888), que seria teoricamente o dia da libertação dos negros com créditos a uma princesa branca (nesta data, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, colocando fim à escravidão no País). Na realidade, para chegar ao 13 de maio houve muito derramamento de sangue. Por isso o dia do Zumbi dos Palmares é muito importante.

Quais são os maiores problemas enfrentados pela comunidade negra no País?

Eu vou apontar três problemas que acho que mais pesam. O primeiro é o mercado de trabalho, que continua excludente. Qualquer pesquisa que fazem, é possível constatar que negros não ganham bem, que negros estão em piores trabalhos, que negros são os primeiros a serem despedidos. O segundo é a invisibilidade do negro nos meios de comunicação. Embora tenhamos muitos avanços, ainda é muito aquém do que poderia ser ou estar. E a terceira é a questão da violência policial, de como o Estado age com os negros. Acho que isso é um problema gravíssimo, pois a gente está morrendo. E é uma violência do Estado e isso é mais terrível. Mas não sei qual desses problemas eu apontaria como mais grave.

O senhor é ligado às artes plásticas, que também agrupa poucas pessoas negras, por que isso acontece?

As artes plásticas também são uma arte de elite, e na elite não existem negros. Nem comprando, nem produzindo. É uma coisa que retroalimenta a outra. Enquanto não tivermos o poder econômico, a gente vai ter muita dificuldade em algumas áreas, pois quem domina é o capital e quem tem dinheiro.

Em quais pontos o poder público pode atuar para diminuir a disparidade de tratamento entre as populações branca e negra?

Acho que colocando políticas de ações afirmativas, ou seja, ajudando no fomento. Acho que foi um grande passo as cotas nas universidades, mas elas precisam ser estendidas aos setores públicos. Eu mesmo fui ator das cotas raciais na cidade de São Paulo, que mudou muito a cidade. Houve multiplicação de mais de 1.000% de presença de negros em cargos estratégicos, cargos elevados. O poder público tem sim a força de nivelar a sociedade, de deixá-la mais justa, até porque é dever do mesmo.

Como a arte pode ajudar o jovem que vive na periferia?

Eu acho que é auxiliando os jovens nessa luta <CF51>(pelo nivelamento e ocupação de espaços mais elevados).

O senhor também atuou como secretário de Igualdade Racial da Capital durante a gestão de Fernando Haddad. Como foi a experiência? Quais as maiores dificuldades?

A experiência é de orgulho, foi muito boa e bacana. Pude aprender muito no setor público, aprendi como poder ajudar a pessoa sobre o olhar do Estado.

Hoje o senhor atua como diretor da revista Raça, veículo dirigido para a população negra. Como surgiu a ideia e qual a recepção do público?

A revista Raça tem 23 anos, surgiu na editora Símbolo. Eu me tornei diretor executivo há mais de dez anos, depois eu me licenciei, porque virei secretário da Igualdade Racial da cidade de São Paulo, depois retornei, mas já como diretor-geral, cuidando dos negócios. A revista nasceu para que déssemos visibilidade aos negros, que nunca eram capa de revista, pois somos apenas coadjuvantes. A única pessoa que aparecia na capa de revistas era o Pelé. O mercado publicitário sempre teve preconceito com negros em capas de revista. Tem uma frase de um famoso publicitário que dizia que se colocasse negro na capa de revista ela não venderia. Quando surgiu a Raça, o cara teve que engolir, pois a Raça, no seu primeiro número, vendeu mais de 270 mil exemplares, foi a maior tiragem que uma revista tirou, se tornando imbatível, nenhuma vendeu tanto, e se tornando a número 1. 

Como o senhor analisa o panorama para a pessoa negra no Brasil na gestão do presidente Jair Bolsonaro?

O governo Bolsonaro precisa ser analisado em diversos aspectos. Principalmente em relação a tudo que tem sido destruído no Brasil, desconstruído, de tudo que já foi feito durante muitos anos. Se você pegar todas as políticas de inclusão... Ele sempre se declarou contrário às cotas, às ações afirmativas, ao trabalho que a gente vem desenvolvendo. E todo esse esforço foi tudo neutralizado. Ele pôs fim ao Ministério da Igualdade Racial. Há o fato de não ter nenhum ministro negro. A destruição começa a ser orgânica até pelo ponto de vista da gestão. Ao falar de cultura negra, eu acho que nós estamos falando de terra arrasada, no sentido mais amplo da cultura. Se não há compromisso nenhum com as pautas populares, com pautas estruturantes da cultura, imagine com a cultura negra, que sempre foi malvista pelas elites brasileiras. A cultura negra sempre foi relegada à cultura popular ou à cultura de menor expressão. A cultura negra nunca foi destino de grandes recursos, seja pela Lei Rouanet, seja por outros fundos de cultura. Nos últimos anos, deu uma melhorada, ocorreram algumas ações, sobretudo na gestão do ministro (Gilberto) Gil e do ministro Juca (Ferreira), mas, ainda assim, nunca foi alvo de grandes investimentos. O governo atual é de terra arrasada. Sem nenhuma perspectiva, não conheço nenhuma ação, não conheço nenhum projeto, nenhum impulso direcionado a essa cultura. E estendo essa ação não só à cultura, mas também à educação.
 

RAIO X

Nome: Mauricio Pestana
Estado civil: Solteiro
Idade: 54 anos
Local de nascimento: Santo André
Formação: Jornalismo
Hobby: Desenhar
Local predileto: Salvador, na Bahia
Livro que recomenda: Genocídio do Negro Brasileiro, de Abadias Nascimento
Artista que marcou sua vida: Não citou
Profissão: Jornalista
Onde trabalha: Editora Pestana Artes, tem 24 anos, publica diversos materiais, entre eles, a revista Raça
 




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