Setecidades Titulo Prática ilegal
Famílias que adotam educação domiciliar temem punições

Decisão do STF sobre ilegalidade da prática, realidade entre 15 mil estudantes no País, deixa adeptos em situação de insegurança jurídica

Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
23/09/2018 | 07:00
Compartilhar notícia
Deborah Gérbera/Arquivo Pessoal


Depois da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), que negou recurso que pedia reconhecimento do direito ao ensino domiciliar no Brasil, famílias adeptas à prática adotam a postura de recolhimento. Isso porque, a partir de agora, o método passa a ser considerado ilegal, inclusive com previsão de punição para pais ou responsáveis que descumprirem a legislação nacional que discorre sobre a obrigatoriedade de crianças com idade entre 4 e 17 anos estarem matriculados em instituição de ensino formal.

A equipe do Diário entrou em contato com famílias do Grande ABC que optaram pela educação domiciliar ou estão pesquisando sobre a prática, mas nenhuma delas quis conceder entrevistas, nem mesmo sob condição de anonimato. A decisão do STF, alegam os pais, deixou as famílias em uma situação de insegurança jurídica e temerosas sobre o futuro.

Apesar de não haver números oficiais, associações que defendem a modalidade de ensino falam em 7.500 famílias e 15 mil estudantes que optaram pela desescolarização no País, sendo que 13% deste volume estaria no Estado de São Paulo.

O tema é controverso e divide opiniões. De um lado, famílias que querem ter mais autonomia sobre o conteúdo dado aos filhos; de outro, especialistas que defendem o papel socializador da escola e a aferição do conteúdo aprendido e até mesmo de educadores que entendem a negativa do STF como uma interferência do Estado na vida familiar.

Apesar de pouco comum no Brasil, a prática de educação domiciliar ou familiar (homeschooling, em inglês), é permitida, autorizada ou regulamentada em mais de 60 países, segundo a Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar). A Constituição Federal e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) preveem que as famílias matriculem os filhos em idade escolar em instituição pública ou privada. Já o Código Penal estabelece detenção de 15 dias a um ano para quem deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho.

O advogado e gestor da ABDEF (Associação Brasileira de Defesa e Promoção da Educação Familiar), Édison Prado de Andrade, entende que a decisão do Supremo não é definitiva. “Não foi declarado constitucional ou inconstitucional o ensino familiar, apenas que é preciso que seja regulamentado por meio de lei”, detalhou. Andrade afirmou, ainda, que desembargadores e juízes de primeira instância podem, inclusive, divergir deste entendimento em outros julgamentos.

Defensor de tese sobre o tema na USP (Universidade de São Paulo), o advogado representa diversas famílias que pedem na Justiça o direito de educar seus filhos fora do ambiente escolar e conta com três decisões favoráveis e dois processos em curso. “Confundem educação com escolarização. Há muitas famílias que consideram a escola altamente prejudicial à educação e ao desenvolvimento dos seus filhos”, argumentou.

Presidente da Aned, Ricardo Dias afirmou que, de certa forma, o próprio julgamento foi uma vitória, porque até o momento a AGU (Advocacia-geral da União) e a PGR (Procuradoria-Geral da República), entre outros órgãos, haviam se manifestado de forma contrária, com “opiniões descabidas, preconceituosas e ignorantes, típicas de quem não sabe o que é educação domiciliar”. “Levamos memoriais para os ministros do STF entenderem do que se trata e não ter sido declarada a inconstitucionalidade é uma vitória das famílias. Agora, voltamos nossas atenções para o poder Legislativo e vamos continuar lutando para que seja aprovado”, relatou.

Segundo informações do STF, as famílias devem matricular imediatamente seus filhos em escolas públicas ou privadas, uma vez que não há legislação sobre e tema e prevalece o entendimento constitucional como consequência prática.

 

Fotógrafa que tirou o filho da escola responde a processo no MP

A fotógrafa Deborah Gérbera, 43 anos, optou, há dois anos, pela educação domiciliar do filho Cauê, 10. Moradora de Ubatuba, no Litoral Norte, ela foi denunciada ao Conselho Tutelar e hoje responde a processo no MP (Ministério Público). “Agora que o STF (Supremo Tribunal Federal) negou (o direito a educação domiciliar), a Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar)</CF> vai entrar com recurso. Pretendo ir até as últimas consequências para garantir nosso direito. Mudar de cidade, se for o caso, pois entendo que isso é o melhor para ele.”

A profissional revela que optou pela medida após perceber que as necessidades do filho “não estavam sendo atendidas na escola”. “Quando ele tinha 8 anos fiz a proposta de estudarmos em casa, o que foi prontamente atendido”, completou. Licenciada em Pedagogia e Artes, a mãe sentiu segurança para ajudar o filho. “Não que apenas quem é formado possa fazer isso. Não é assim. Com empenho e pesquisa, todos os pais podem”, defendeu.

Fora da escola, Cauê e Deborah trabalham de forma sistematizada o aprendizado de Português e Matemática, com o auxílio de livros didáticos. As outras disciplinas são aprendidas mais livremente, segundo a dupla. “Sentamos para estudar todos os dias, mas não temos horário definido. A Matemática reforçamos na fila do mercado, fazendo contas; Ciências a gente estuda vendo os diferentes tipos de folhas perto da praia, os caramujos do quintal. Todo assunto e todo momento é uma oportunidade de aprendizado”, afirmou Deborah.

Questionada sobre a socialização do filho, a fotógrafa relatou que “educação domiciliar não é prisão domiciliar”. “Ele segue se encontrando com amigos na praia, em outras atividades”, justificou. Cauê confirma que tem gostado da rotina. “Pretendo continuar assim”, reforçou. Ao ser perguntado se não teme aprender menos do que os colegas, o garoto diz “nem pensar nisso”. “Cada um tem o seu tempo”, observou.

 

Especialistas divergem sobre decisão do Supremo

Especialistas ouvidos pelo Diário divergem em relação à desescolarização. O gestor do curso de Pedagogia da USCS (Universidade Municipal de São Caetano), Nonato Assis Miranda, entende que a educação dos filhos é competência da família. “Se a família se vê em condição de dar a formação nos mesmos moldes da escola, não vejo problema”, frisou. O especialista entende a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) como interferência exagerada do Estado na vida dos cidadãos, e defende que o papel do Estado seja o de fiscalizar o aprendizado destes alunos que optam por estar fora das escolas.

“Avaliações anuais seriam o bastante para atestar o desenvolvimento dos estudantes. Em casos onde o desempenho não estivesse adequado, a família poderia ser obrigada a matricular o filho em uma unidade de ensino”, defendeu o coordenador. Assis ponderou, ainda, que é uma discussão complexa e que precisa ser tratada com urgência pelo Legislativo. “É preciso dar uma resposta para as famílias que hoje adotam a educação domiciliar.”

Já o professor da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) Ocimar Alavarse, concorda com a decisão do STF. “Ainda que possamos ser sensíveis aos argumentos de quem defende essa opção, é preciso colocar na ‘balança’ e ponderar que o processo de escolarização dos indivíduos é também de socialização”, defendeu.

Sobre o argumento de que educando os filhos em casa é possível evitar questões como bullying e aspectos morais contrários ao entendimento familiar, como educação sexual nas escolas, Alavarse destaca que isso tudo também existe dentro das famílias. “A família não existe fora do contexto social. O mundo é hostil e as crianças devem ser preparadas para isso. Devemos é defender uma escolarização que também seja proteção para os males do mundo”, concluiu.

 




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;