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Jovens agredidos sofrem
falta de amparo na região
Deborah Moreira
Do Diário do Grande ABC
27/12/2010 | 07:39
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Faltam políticas públicas de combate à violência doméstica contra os jovens na região. Apesar da origem da desigualdade entre homens e mulheres começar na infância, especialistas ouvidos pelo Diário apontam ser fundamental a adoção de programas na adolescência, quando as diferenças e as relações de poder entre homens e mulheres se acentuam.

Somente em São Bernardo há programas específicos para o público jovem (leia abaixo). Nas demais cidades, existem ações importantes e até de referência nacional que preveem a inclusão de jovens, como as casas-abrigo, mantidas pelo Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, para os que sofrem ameaça de morte. No entanto, não há nada específico voltado para meninos e meninas em fase de transformações hormonais.

A violência entre casais jovens vem ganhando evidência e sendo estudada por educadores. A socióloga Vânia Pasinato, do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), ressalta que o "machismo não tem classe social e nem idade" e que vem sendo passado geração após geração, principalmente a partir da educação transmitida dentro da família.

Ela lembra que a sociedade tem um acúmulo de avanços na discussão dos direitos da mulher e no reconhecimento da violência contra ela, principalmente na última década. Mas não foi suficiente para mudar a cultura.

Para a socióloga, ações voltadas para a juventude colocariam em evidência essa violência que começa a ser despertada logo nas primeiras experiências de namoro. "Os jovens reproduzem o comportamentos que têm em casa. A mídia também tem papel importante na reprodução dos valores machistas", afirma Pasinato.

Pesquisa feita pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em dez capitais, entre agosto de 2007 e agosto de 2009, com 3.200 adolescentes de 15 a 19 anos, demonstra que nove em cada dez casais jovens de namorados já sofreram ou praticaram algum tipo de violência, do xingamento à agressão física, passando pelo sexo forçado à humilhação pública via internet. O estudo também revelou que meninas são tão ou mais agressivas que os meninos.

O pedagogo Ricardo Galhardo avalia que, em busca da autoafirmação e pressionado pela sociedade, o adolescente se afasta dos pais e da família e passa a ter os amigos e ídolos como referência.

"Apesar de ser influenciado, ele nega o mundo adulto e tem aversão ao Pai do Céu, ao pai da terra e ao pai da escola, que é o professor. Suas referências são amigos, a mídia, ídolos do mundo pop que muitas vezes estão relacionados às drogas", afirma Galhardo, que é de São Bernardo.

Delegacia da região dá orientação errada

A auxiliar de cobrança Juliene de Lira, 23 anos, foi agredida verbal e fisicamente pelo tio em um domingo à tarde. Abalada, a moradora de Eldorado, em Diadema, foi acompanhada do namorado ao plantão policial do 1º DP (Distrito Policial). Quando contou o que houve, ouviu do escrivão de plantão que o atendimento ideal para o seu caso seria a DDM (Delegacia de Defesa da Mulher), que não abre nos fins de semana e feriados.

A equipe do Diário viu que o funcionário não se negou a fazer o BO (Boletim de Ocorrência). Porém, orientou a vítima a esperar e procurar por uma DDM, onde seu caso teria melhor encaminhamento. Segundo ele, além de ser plantão, os procedimentos na delegacia comum não seriam os mesmos que os da delegacia especializada, no dia seguinte, uma segunda-feira.

Indignada, Juliene foi embora se queixando da falta de uma solução imediata. Que teria que voltar para casa, onde poderia encontrar o tio novamente. No dia seguinte, encontrou a DDM fechada, porque era feriado de 15 de novembro.

Na terça-feira, dia 16, mais calma, conseguiu enfim fazer o boletim, mas desistiu de seguir adiante, já que as marcas não apareciam. "Ele (o tio) já tinha me batido uma vez. Felizmente mostrei o BO a ele, que não mexeu mais comigo. Mas me sinto frustrada em não ter resolvido da forma como acho que seria justo. Quer dizer, qualquer homem bate em uma mulher e fica por isso mesmo, só porque é fisicamente mais forte", reclama.

Jorge Layre Guerreiro Filho, delegado titular do 1º DP, afirmou que o fato está sendo apurado e que serão tomadas as medidas cabíveis. A Secretaria Estadual de Segurança Pública informou que todos os funcionários são orientados a registrar BOs de qualquer natureza, inclusive para dar prosseguimento às investigações ou encaminhar, depois, às delegacias especializadas.

O caso da auxiliar de cobrança é um típico exemplo do que ocorre com as mulheres nos fins de semana, quando as DDMs estão fechadas. A delegada Rosmary Corrêa, presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina e primeira delegada a assumir uma Delegacia da Mulher, nos anos 1980, disse que no caso de impossibilidade de a mulher se dirigir a uma DDM, toda delegacia comum deve atender prontamente a vítima de violência doméstica, em qualquer dia e horário.

"As leis brasileiras, que punem agressores e dão proteção à mulher, também garantem o atendimento à vítima em qualquer delegacia", afirmou a delegada Rose, como é conhecida, durante evento na Capital que reuniu especialistas no assunto para inauguração do Portal Quebre o Ciclo.

Também presente, a farmacêutica cearense que inspirou a lei de violência doméstica que ganhou seu nome, Maria da Penha Maia Fernandes, defendeu a legislação do País. Questionada sobre a falta de eficácia na resolução dos casos que não são flagrantes, a maioria deles, concorda que ainda faltam delegacias especializadas no atendimento à mulher, principalmente no interior do País. Para ela, uma das soluções seria instalar pequenas delegacias da mulher em eventuais espaços ociosos de delegacias comuns. Atualmente, são 129 DDMs no Estado.

"Nosso desafio é interiorizar os equipamentos da lei nas cidades pequenas. Nas capitais e grandes centros urbanos há um número considerável. Mas, no interior, a mulher discriminada passa por situações de grande perigo, e sem amparo do Estado", afirmou Maria da Penha.

Contos de fada desvendam as relações em São Bernardo

Você sabia que a história de Os Três Porquinhos foi pensada para a educação exclusiva de meninos? E que o príncipe de Cinderela na história original precisou ir a três bailes e percorrer um longo caminho até encontrar a Gata Borralheira, seu amor verdadeiro? Essas e outras histórias são analisadas no projeto Contando Histórias, da Fundação Criança de São Bernardo, mantido nas bibliotecas das escolas da rede municipal com objetivo de dar formação profissional em contação de histórias e cidadania.

Iniciado em 2007 somente com meninas entre 15 e 17 anos, o projeto atendeu cerca de 1.000 adolescentes. Destes, pelo menos 30% levaram conflitos domésticos para discussões com o grupo. Só em 2009 foram 333 garotas. Neste ano, finalmente foram abertas vagas para meninos; foram atendidos 150 adolescentes, mas a maioria, 133, meninas.

"Ainda são poucos meninos. Mas abrimos vagas para eles porque se não trabalhar o adolescente masculino ele estará excluído do processo, que é de toda a sociedade. Alguns não assumem compromissos com filho tido com a namorada. Então, apresentamos a história de Peter Pan, o menino que não quer crescer e ter responsabilidades", compara Josenildo Luiz Gonzaga, 27 anos, educador responsável pelo trabalho.

As meninas também refletem suas posições sociais a partir das histórias, como em Cinderela. "O conto ganhou o imediatismo e contornos da sociedade moderna. Mas, no original, o príncipe vai a três bailes e percorre toda a cidade até encontrar a mulher amada. Também abordamos a idealização do homem e da mulher nos contos, como príncipes e princesas perfeitas. Na vida real não é bem assim", ressalta Luiz Gonzaga.

Para Fernanda, 15, que há pouco mais de dois meses participa do projeto, contar histórias para crianças de 7 e 8 anos mudou a forma de enxergar a vida. A adolescente, adotada pelos tios, já que a mãe biológica, então solteira, não teve condições de criá-la, não espera que a vida seja um conto de fadas, mas deseja algo melhor. "Não quero que a história se repita comigo", conta.

A Fundação Criança também mantém, há cinco anos, o Rotativo Cidadão, que fiscaliza o estacionamento nas vagas pagas em vias públicas em troca de bolsa de R$ 300. Voltado para jovens entre 18 e 21 anos, já atendeu 1.800 deles com objetivo de inseri-los no mundo do trabalho. Paralelamente, recebem capacitação profissional. Atualmente, 209 são atendidos, sendo 122 moças.

A coordenadora do Núcleo de Oportunidades e Inclusão da Fundação, Dagmar Cândido, explica que eles acabam levando as experiências vivenciadas nas ruas, o que ajuda nas reflexões de gênero. "Não é um programa que discute somente gênero. A ideia é fazer com que vivenciem o universo profissional e, com isso, reflitam sobre diversas questões", explica.

Falta atendimento diferenciado na região

Apesar de o atendimento a mulheres em situação de violência doméstica no Creas (Centro de Referência Especializado da Assistência Social) estar previsto, não há ainda em qualquer unidade o amparo "especializado e necessário" para as vítimas. A afirmação foi feita pela secretária Aparecida Gonçalves, da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher da SPM (Secretaria de Políticas para Mulheres), do governo federal.

Segundo ela, será preciso cerca de um ano e meio para treinar todos os funcionários, o que só acontecerá a partir de 2011. "Elas (vítimas) estão sendo atendidas. Mas é preciso equipe especializada e sala separada para preservá-las. Todos os processos e critérios estão em fase de discussão. Já garantimos o atendimento a mulheres que estão em situação de abrigamento pelo serviço da assistência social. Agora, vamos capacitar o pessoal nos Creas", afirma Aparecida.

O Creas foi criado pelo Ministério do Desenvolvimento Social para compor o Suas (Sistema Único de Assistência Social), com objetivo de universalizar o atendimento público às vítimas de conflitos familiares que têm direitos ameaçados, incluindo crianças, adolescentes e idosos. Os casos mais simples são encaminhados aos Cras (Centros de Referência de Assistência Social).

Organizações de mulheres da região vêm alertando para o risco de os três centros que atendem exclusivamente vítimas de violência doméstica do Grande ABC serem substituídos por futuros Creas. Somente Santo André admitiu estar estudando a possibilidade de receber recursos federais e transferir atendimento do Vem Maria para o Creas.

Em São Bernardo e Diadema, onde também há atendimento especializado, a manutenção está garantida. "Os centros que já atendem são uma conquista histórica das mulheres, e aqui será mantido. Mas acredito que é possível a instalação de Creas onde ainda não existe o atendimento especializado", explica Márcia Leal, diretora de Proteções Sociais da Secretaria de Assistência Social e Cidadania de Diadema. Ela é responsável pela Casa Bete Lobo, que faz 40 atendimentos mensais e acompanha atualmente 90 mulheres, incluindo as encaminhadas para casas-abrigo da região. A instituição é mantida com recursos do município, cerca de R$ 400 mil ao ano para despesas com pessoal e locação do imóvel, e da Seads (Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social), com R$ 24 mil ao ano. O ministério só financia Cras e Creas.

Em todo o País, são contabilizados 164 centros de referência mantidos pelos municípios, mas em alguns casos há verba federal para aquisição de equipamentos. O Creas soma 2.034 unidades e conta com verba do ministério.

A secretária do órgão federal lembra que o Creas tem maior capilaridade e pode exercer a mesma função que os centros de referência, sem prejudicá-los. "Em cidades com poucos habitantes, por exemplo, eles serão fundamentais. Outro ponto que estamos discutindo é o conceito de família, que mudou muito. Em alguns casos, a manutenção do casamento, da família, é tudo o que a mulher não precisa", ressalta Aparecida.

Marlene Bueno Zola, coordenadora de Assistência Social da Seads, afirma que a rede Suas tem somente cinco anos e que há muito a ser discutido. Ela lembra que o Estado repassa recursos para municípios aplicarem nos centros exclusivos de mulheres, normalmente administrados por uma entidade. "A lei orgânica de assistência social prevê que a primazia da política de assistência é pública e pode ser desenvolvida em parceria com a sociedade civil. E na secretaria isso é levado em conta. É o que conhecemos por rede socioassistencial", explica Marlene.

ONU aposta em mudança na juventude

A Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher) está investindo em projetos de combate à violência contra a mulher que têm o jovem como foco. Um deles é o portal recém-inaugurado Quebre o Ciclo (www.quebreociclo.com.br), em parceria com a iniciativa privada.

"É para operadores da Justiça como advogados e juízes, e para jovens. Dois públicos-chave na reeducação", declara Rebecca Tavares, representante do Unifem, que passa a ser ONU Mulheres em janeiro. Ela participou do lançamento do portal e falou com exclusividade ao Diário.

A entidade também vem apoiando projetos da sociedade civil e governamentais. "O papel do Estado é fundamental. Por isso dedicamos a maior parte do trabalho na promoção de políticas públicas, apoiando grupos da sociedade na articulação com o governo para implantação das mesmas. É a forma mais segura de fomentar a igualdade", afirma a representante da ONU no País, que atua dentro do contexto de acordos internacionais como o Decreto Universal de Direitos Humanos e a Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher), de 1979.

Rebecca Tavares, que atua na defesa dos direitos das mulheres há mais de 20 anos, lembra que em países desenvolvidos como Dinamarca há maior igualdade de gênero, inclusive com adoção de licença-paternidade estendida. "Na Dinamarca há o índice de felicidade mais alto do mundo. Não posso dizer que é por causa da igualdade, mas é um dado interessante", observa.

A especialista norte-americana lembra que a desigualdade de gênero faz parte de um conjunto de discriminações que precisam ser tratadas de maneira articulada e integrada.

"Ainda há muita discriminação de raça, de etnia, de identidade sexual, de portadores de HIV, de imigrantes e, mais recentemente, com idosos. Todas essas discriminações fazem parte de um fenômeno que se refere às relações de poder estabelecidas ao longo dos tempos nas sociedades", avalia.




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