Cultura & Lazer Titulo
Cachaça, a verdadeira número 1
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
21/07/2004 | 20:57
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Litros foram sorvidos e séculos consumidos antes que o vinho de cana-de-açúcar, a garapa azeda, a cagaça produzida no Brasil pela primeira vez nos idos de 1540, em engenhos da capitania de São Vicente, se transformasse na cachaça que é, desde 2001 e graças a um decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso, reconhecida como bebida oficial do país. Não foi só o estigma de “drinque de sujinho” que atentou contra o destilado, mas também taxações como a que a Coroa Portuguesa aplicou em meados do século XVIII, temendo a concorrência que o produto ofereceria para a bagaceira, bebida lusitana. No trajeto que partiu dos balcões de fórmica descascada rumo aos luxuosos mármores, a pinga ganhou status de birinaite chique e até uma feira de negócios exclusiva, denominada Brasil Cachaça 2004, que começa nesta quinta no Parque de Exposições do Anhembi, em São Paulo.

A feira – aberta nesta quinta e sexta, das 14h às 22h, e sábado e domingo, das 13h às 22h, com ingressos a R$ 20 – reflete um ânimo de mercado que produz anualmente 1,3 bilhão de litros e emprega 400 mil pessoas. Incrementada com cursos de degustação, comercialização de produtos e um alambique que ilustra o processo de fabricação da branquinha, a Brasil Cachaça 2004 espera movimentar R$ 12 milhões em negócios e acolher 25 mil visitantes.

Golinho a mais – Nunca um relacionamento rendeu tantas alcunhas carinhosas quanto o da cachaça e seus apreciadores: nomes manjados como água-que-passarinho-não-bebe, canjebrina, januária, suor-de-alambique, abrideira, patrícia e teimosa, e outros mais originais, tipo engasga-gato, lágrima de virgem, levanta-velho, urina de santo, assovio de cobra, capote-de-pobre, desmancha-samba, quebra-munheca, sete-virtudes e tira-teima. A relação de extremos transcende a nomenclatura para chegar aos preços da birita em estabelecimentos do Grande ABC (mais informações nesta página). Por exemplo, a garrafa de Anísio Santiago, pinga artesanal que custa R$ 280 nas unidades da cachaçaria Água Doce da região, paga 400 doses, ou 32 litros, da marca 51, industrializada, no bar andreense Flor da Benedetti.

Essa distância abissal tem seus motivos. “Para se chegar a uma boa cachaça, é necessário um conjunto de coisas”, diz Delfino Golfeto, que fundou a rede de franquias Água Doce em 1990, hoje disseminada em 80 pontos do país. Tudo influi na qualidade da cachaça, desde o solo em que é plantada a cana-de-açúcar até o envelhecimento em barris de madeira. Uma diferença básica entre a “imaculada” industrial e a artesanal é a colheita. “A grande indústria não consegue colher a cana crua, sem queimá-la, e, além de tudo, ainda deve levar a matéria-prima dentro de 24 horas para industrializar”, afirma Golfeto. “O pequeno e o médio produtor podem esperar (a cana) até três dias. A concentração dos açúcares fica até melhor”.

Depois disso, a garapa obtida da moagem da cana passa pelo processo de fermentação, “que é tranqüila se durar de 6 a 20 horas”, e vai para a destilação. São três os destilados, chamados de “cabeça, corpo e pé”, que podem revelar até a conduta ética do produtor. “O bom produtor costuma deletar os primeiros litros da cabeça, porque eles podem conter alcoóis prejudiciais à saúde”, diz Golfeto. “Miscorete” da boa é a que sai do corpo, também chamado de coração, pois seu teor alcoólico situa-se entre os 38 e os 54 graus GL recomendáveis. Uma etapa facultativa na produção, a do envelhecimento, agrega sabores e aromas à bebida e pode levar de seis a 18 meses em barris de madeiras como carvalho, cerejeira e jequitibá-rosa.

Passou canavial, passou alambique, passou barril de envelhecimento, vem então a prova dos noves, no copo do consumidor. Uma cachaça de elite, no sentido gustativo do termo, deve apresentar peculiaridades distintas, segundo Delfino Golfeto: 1) possuir uma consistência oleosa, a que os especialistas batizam “cortina” ou “véu”, uma viscosidade para provar quão encorpada é a pinga e que pode ser vislumbrada num movimento de vaivém do copo; 2) exalar um aroma característico de fruta, flor ou da madeira em que foi envelhecida; 3) não ser agressiva ou ácida ao paladar. “E, acima de tudo, tem de dar vontade de tomar um golinho a mais”.

Com feijão e fondue – Na gastronomia, a “moça-branca” pode ser acompanhante de feijoada e de carnes vermelhas, mas também de pratos importados da Europa. “Vai bem até com fondue”, diz Sara Amorim, sócia e chef do Ora Pro Nobis, restaurante de São Bernardo especializado na cozinha mineira. A propósito, é de Minas Gerais, estado responsável por praticamente 15% da produção nacional, que vêm boa parte das pingas mais famosas e apreciadas do país. Sara, mineira de Belo Horizonte, sempre traz pingas de alambiques quando viaja à terra natal, sobretudo de cidades como Passatempo e Gonçalves.

Alguns desses rótulos também freqüentam 58 metros quadrados da casa do empresário Milton Ferriani, 76 anos, que armazena em Santo André sua coleção de 3,7 mil cachaças, catalogadas, algumas com mais de 60 anos de embalagem. O colecionador – apreciador de guaraná e suco de abacaxi porque é abstêmio (“se beber, fico vermelho como um pimentão”) – já aportou em Piauí, Rio Grande do Sul e, claro, Minas Gerais com o intuito único de angariar novos espécimes. Já teve de alugar perua Kombi para carregar os desejados vasilhames, numa viagem a Contagem. Atualmente, interrompeu as caçadas ao líquido. “Não tenho mais onde colocar garrafa em casa”.

E, em tempos de Festival de Inverno de Paranapiacaba, a pinga aparece como ingrediente de um drinque cada vez mais conhecido pelos visitantes da Vila. Na Casa da Tia Edina, lanchonete que herda o nome da proprietária, Edina Leschics Santos, a coqueluche é a caipirinha de cambuci, na qual o tradicional limão galego é ignorado em favor da fruta típica de Paranapiacaba. O segredo do coquetel? “Não adianta fazer a caipirinha com aquelas pingas melhores (artesanais), não. Tem de ser (das marcas) 51 ou Velho Barreiro, senão fica amargando”, afirma Edina. A “marvada”, definitivamente, deixou de ser apenas o “taio” que “atrapaiava” multidões nas “vendas”, conforme cantavam Pena Branca e Xavantinho.

Onde beber no Grande ABC

Adega Gauchão – av. Getúlio Vargas, 910, Baeta Neves, São Bernardo. Tel.: 4125-6043. Funcionamento: De segunda à quinta, das 8h às 20h30. Sexta até 21h30, sábado até 19h30 e domingo até 14h. 60 lugares.

A Adega do Gauchão existe desde 1985 e serve, no balcão ou na mesa, mais de 120 tipos de cachaça (R$ 2 média a dose) de vários estados. Destaque para a garrafa da Orgulho Mineiro (R$ 15). Envolta em serragem e acompanhada de um copinho é ótimo presente. Em ambiente familiar, serve também refeições. Uma boa opção para acompanhar a cachaça é a porção de carne seca ou de carne assada (R$ 10 cada).

Adega Tonel – r. Castro Alves, 492, São Caetano. Tel.: 4228-3176. Funcionamento: De terça a sábado, das 9h30 às 19h30. Domingo até 13h30. 30 lugares. Com um ambiente familiar, existe há 20 anos e conta com 10 diferentes tipos de cachaça (R$ 0,80 média da dose). Boa opção para acompanhar a pinga são os espetinhos de carne, lombo ou frango (R$ 1,50 cada).

Água Doce Cachaçaria (SA) – r. das Figueiras, 634, Santo André. Tel.: 4436-6154. Funcionamento: De domingo à quarta das 17h30 à 1h, de quinta a sábado, das 17h30 às 2h. 200 lugares.

A rede de restaurantes conta com 80 casas no Brasil todo. A franqueada de Santo André abriu há 7 anos e meio e serve mais de 180 marcas de cachaça de diferentes regiões do país (R$ 2 a média da dose). Segundo Ivonete de Traglia Gonçalves, 55 anos, proprietária, o seu público é diversificado. “O mercado está crescendo. Recebemos hoje desde executivos na happy hour, famílias para jantar e jovens mais à noite”, conta. Ivonete conta também que recebe muita gente de fora do país interessada em conhecer a bebida. Alternativa para acompanhar é a porção de bolinho de frango (R$ 17).

Água Doce Cachaçaria (SB) – av. das Nações Unidas, 206, São Bernardo. Tel.: 4124-6003. Funcionamento: De terça e quarta, das 18h às 12h, de quinta a sábado das 18h às 2h; domingos, das 17h às 23. 250 lugares.

A segunda filial da rede Água Doce na região abriu há dois anos e também conta com 180 tipos diferentes de cachaça (R$ 2 média da dose). No local, a que mais sai é a Espírito de Minas. Entre as mulheres, que hoje representam 30% da clientela, a mais vendida é a com maçã. A porção de bolinho de carne de sol (R$ 11,60) é uma boa opção para acompanhar a branquinha.

Cachaçaria Central – av. Lino Jardim, 863, Santo André. Tel.: 4994-5162/4427-8040. Funcionamento: De terça a domingo, das 11h30 às 0h30; segundas, das 11h30 às 17h. 120 lugares.

Com um ambiente familiar, que conta com música ao vivo (todos os dias, menos terça), a casa oferece, há três anos, 150 tipos de cachaças (R$ 2,50 média). As mais pedidas são a Canelinha, a de abacaxi e a de coco (R$ 2,50 cada), que vêm de Cabreúva, interior de São Paulo. Para acompanhar, porções de carne seca e de costela com mandioca (R$ 21,90 cada).

Flor da Benedetti – r. Alberto Benedetti, 301, Santo André. Tel.: 4993-1297. Funcionamento: De segunda à sexta, das 10h às 22h. 20 lugares.

O boteco é conhecido pela tradicional Pinga do Aquário (R$ 1 a dose). Inventada pelo proprietário, o português José Teixeira, 58 anos, é feita da mistura da marca 51 com mel e gengibre em um aquário e servida preferencialmente gelada. Teixeira criou outros 18 tipos de pinga (R$ 0,70 cada), com misturas de ervas e plantas. O bolinho de croquete de jabá (R$ 2) é também muito conhecido. Aos sábados e domingos, ele atende em Paranapiacaba (r. Direita Velha, 354, Varanda Velha), onde serve a pinga de banana (R$ 0,70), preferência do público feminino.




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