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Casal andreense mostra que amor pode superar todo obstáculo

Pais de Santo André se adaptam às necessidades dos filhos na busca por bem-estar e esperança

Por Francisco Lacerda
Do Diário do Grande ABC
30/06/2019 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


A história de Maurício Tamarindo Rodrigues, 48 anos, e de sua mulher, Tatiana de Freitas, 40, moradores da Vila São Pedro, em Santo André, poderia, dramaticamente, virar enredo de novela ou filme, daqueles de arrepiar e fazer chorar. O casal tinha tudo para naufragar, mas resolveu ir à luta até as últimas consequências para permitir que os filhos Maryana de Freitas Tamarindo Rodrigues e Miguel Antônio de Freitas Tamarindo Rodrigues pudessem ter um pouco de qualidade de vida e de esperança.

As crianças têm mielomeningocele, conhecida também como espinha bífida (má-formação congênita da coluna vertebral, em que as meninges, a medula e as raízes nervosas ficam expostas); Arnold Chiari tipo II (má-formação do cérebro), bexiga neurogênica (falta de controle do órgão) e infecção urinária, além de usarem sonda de quatro em quatro horas, já que não fazem xixi nem cocô. Mary ainda sofre de hidrocefalia, escoliose e teve pneumonia. Miguel tem falência de rim e usa órteses para andar.

Hoje, Miguel, 6 anos, tem mobilidade reduzida e já fez quatro cirurgias de correção. Mary, 16, é cadeirante e passou por 15 procedimentos. Ainda bebê, ela teve AVC (Acidente Vascular Cerebral) e, logo depois, foi constatada hidrocefalia. Teria de implantar válvula no cérebro.
Já ‘mocinha’, Mary sentiu-se mal na escola. Houve necessidade de troca da válvula. Sofreu duas paradas cardíacas, convulsões e ficou 120 dias na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). “O nível de consciência dela reduziu, teve choque anafilático e infecção generalizada. O médico alertou que ela estava no limite, corria risco de morrer. Quando internou pesava 50 quilos, mas o peso reduziu para apenas 22 quilos.” Ela ainda passaria mais duas vezes por esse procedimento.

“Em uma das paradas, minha filha perdeu a força nas pernas. Depois veio depressão pós-traumática.” Triste nova realidade na vida do casal. Mary necessitaria de cadeira de rodas para se locomover. Maurício, então, foi às aulas de educação inclusiva. Nelas descobriu o poder dos lacres de latinhas de alumínio e que poderia ajudar ao próximo (leia mais abaixo).

Mesmo com todos os problemas da menina, Maurício e Tatiana nutriam desejo de ter outro bebê. Recorreram à ciência para “cercar a reincidência ao segundo filho”. Trataram-se alguns meses antes e durante a gravidez. Quase deu certo. Miguel veio ao mundo dez anos depois de Mary, diagnosticada com mielo com 2 meses na barriga da mãe. Com o tratamento, as patologias no menino só se manifestaram no sétimo mês da gravidez. “Então, as sequelas do Miguelzinho foram bem menores. Mas um dos rins tem só 12% hoje.”

Os filhos precisavam, então, de atenção integral. Maurício deixou o emprego e sua missão passava a ser outra, a procura do bem-estar dos rebentos. A mãe permaneceu no trabalho, e até hoje é funcionária pública em Santo André. “Era humanamente impossível trabalhar. Fiz estágio para aprender sondagem e outros procedimentos. Fico em stand by. Se eles gritam eu corro”, diz o pai, com naturalidade que impressiona, mas com a lágrima teimando em tentar se esconder.

Em 2017, não bastasse a batalha diária, Maurício foi diagnosticado com câncer, com dois tumores no intestino. Tirou-os e também boa parte do órgão. Manteve-se de pé, forte, determinado. Havia duas pessoas que dependiam dele.

Nesse mesmo ano, a garotinha, de novo, passou mal na escola. Pensou-se que fosse infecção urinária. “Mas foi só pneumonia”, diz o pai, ‘aliviado’.

Em 2018, quando a vida tomava rumo ‘normal’, surgiu a possibilidade de que os tumores de Maurício tivessem retornado. Outra cirurgia e, nos oito meses de recuperação, os pais dele mudaram-se para Santo André para ajudar. A avó das crianças auxilia nos serviços domésticos; o avô, em todo o resto.

Quando a equipe de reportagem visitou a família, a menina estava internada, com alta prevista para o dia seguinte. Tatiana iria ao hospital após o trabalho.

Mary tem quarto-UTI, com seu nome e o do irmão nas paredes e também inúmeras fotos, todas com sorrisos estampados nos rostos. Miguel tem home care. A casa é adaptada e os brinquedos espalhados fazem parte da decoração, mas não falta espaço para que o corintiano Miguel faça seus gols. Ele sai à rua, corre na calçada, recebe carinho dos vizinhos, pula, cai e levanta, não para. As limitações são apenas físicas. “Até parece que eles não têm nenhuma doença, porque estão sempre rindo e brincando. Nunca ouvi eles reclamando de nada”, diz o avô Orácio Rodrigues, 79.

Nota-se que para o casal nunca foi obrigação o cuidado com as crianças. E, sim, sentimento muito além do amor. 

Pedimos a Deus, porque é um dia de cada vez

Com tantos problemas, pode-se até imaginar que as crianças vivem reclusas, mas engana-se quem pensa que as limitações prendem a família em casa. Mary visita as amigas, vai a eventos na escola e se diverte. O pai, às vezes, ‘arrasta’ todo mundo, inclusive as enfermeiras do home care, aos shoppings, parques, cinema e aos encontros de carros antigos que participa com seu Kadett Ipanema 1991.

“É difícil para uma adolescente. Ela tem os questionamentos da vida, vê as diferenças, sente as frustrações. Por exemplo, é o segundo ano seguido em que ensaia para a festa junina na escola, arruma noivo que queira dançar com ela, que empurre a cadeira, mas, por algum motivo, ela interna. Disse que agora não quer mais casar. Participar da festa junina ela quer, mas não mais casar (risos).”

O aniversário de 15 anos Mary passou na UTI, “comemorando e agradecendo a Deus por mais um dia”, conforta-se o pai. A festa de formatura dela foi aos 16. “Imobilizamos as pernas dela, o padrinho era forte, segurou-a com firmeza. Aí, na hora da valsa, ela conseguiu ficar em pé. Pôde realizar o sonho de dançar. Todo mundo no salão chorou olhando a cena. Era o sonho dela e ela realizou.”

Devido ao AVC, que paralisou seu lado direito, Mary, que é destra, fez tratamento por cinco anos para aprender a escrever com a mão esquerda.

“As crianças não recebem nenhum tipo de bolsa nem auxílio do governo por serem deficientes”, lamenta o pai, que também não tem aposentadoria. A família vive única e exclusivamente do salário de Tatiana, revertido todo às crianças, e de colaboração de parentes.
Fortes e sempre bem dispostos para a vida que o destino impôs ao casal, Maurício e Tatiana, católicos, atribuem à crença a força por nunca terem desanimado diante das agruras, o que é fácil constatar.

“Nos fortalecemos um no outro. Um não deixa o outro cair, temos muita fé, sempre pedimos a Deus, porque é um dia de cada vez. Todo dia é uma superação, é outro dia de batalha. Mary e Miguel vão superar limitações, dar valor à vida, estudar. Se ajudarão e vão fazer tudo que a vida proporcionar. A gente está aqui só para garantir isso e dar qualidade de vida a eles.”

Turma do Jiló, da Capital, transforma lacre de latinha em cadeiras de rodas

A saída da garotinha do coma e, consequentemente, do hospital, trouxe a Maurício projeto que até então não conhecia, mas do qual se tornou um dos ‘embaixadores’, a Turma do Jiló, na Capital, que arrecada lacres de latinhas de alumínio e troca por cadeiras de rodas.
Sem condições de adquirir o item com medidas adaptadas às condições da filha, Maurício foi conhecer a campanha de doação. Em janeiro se colocou na fila. Três meses depois, em abril, foi iniciada a campanha, da qual a direção da instituição, sem fins lucrativos, disse a ele que a família “não precisava colaborar com nenhum lacre”.

Isso o incomodou. “Não conseguia ficar parado esperando a cadeira chegar. Divulguei nas redes sociais – tive 400 compartilhamentos –, fiz parcerias com bares, restaurantes, padarias, pizzarias, empresas, fui a todas as escolas de Santo André, fiz da minha casa ponto de coleta, porque precisava de 500 garrafas PET de dois litros cheias de lacre (cerca de 2.500 peças) para a cadeira. Quando o instituto veio trazer a cadeira, com lacres arrecadados por eles, dei a eles 1.000 garrafas cheias de lacres”, comemora. “Pude ajudar duas pessoas. Seria muito confortável para mim conseguir a cadeira da minha filha e não fazer mais nada. Então resolvi que não iria mais parar.”

Em um ano o casal arrecadou em lacres o equivalente a nove cadeiras “Tinha gente que desconfiava. Mas viram um rosto, que era o da minha filha. Meus amigos compartilhavam e diziam ‘eu conheço e a filha dele recebeu’. Foi um trabalho de formiguinha.”

A Turma do Jiló, no entanto, por ser fundação sem fins lucrativos, que sobrevive com doações, consegue se livrar do atravessador e do ferro-velho e repassar o lacre diretamente à fundição. O dinheiro da venda é usado na compra direta ao fabricante da cadeira, o que faz com que fique mais barata, cerca de R$ 2.500 a R$ 4.000, ante aproximadamente R$ 6.000 no comércio.

O nome veio da comparação da fruta com a inclusão. “Quando o jiló é malfeito, fica horrível e ninguém come. Quando a inclusão é feita com amor, com carinho, daí o jiló fica gostoso. Daí o nome pegou. A turma da inclusão, a Turma do Jiló”, explica Maurício.

“De agora em diante você vai olhar diferente para o lacre da latinha. Vai tirar e guardar, porque é material limpo, fácil de armazenar”, pede o pai.




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