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Para que sirva de lição

Incêndio em casa noturna de Santa Maria completa 1 ano hoje sem a punição dos responsáveis

Fabio Munhoz
Do Diário do Grande ABC
27/01/2014 | 07:00
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Da AE


Depois de um ano da tragédia que interrompeu os sonhos de 242 jovens em Santa Maria, Rio Grande do Sul, familiares das vítimas do incêndio na Boate Kiss lutam para que as mortes não tenham sido em vão. A busca por justiça e para que o tema não caia no esquecimento é que move as milhares de pessoas que tiveram as vidas mudadas em razão da irresponsabilidade de empresários e do poder público.

Apesar de o acidente ter ocorrido a 1.300 quilômetros da região, o desenrolar dos fatos é acompanhado de perto pelo consultor de informática Paulo Carvalho, 63 anos, de Santo André. Ele é pai de Rafael Paulo Nunes de Carvalho, única vítima paulista entre os mortos no incêndio. São-paulino fanático, o rapaz faria 33 anos no sábado. A comemoração do aniversário, inclusive, foi um dos motivos que o levou dias antes a Santa Maria, cidade onde moravam amigos que conheceu em intercâmbio à Nova Zelândia.

Carvalho, que é representante da AVTSM (Associação das Vítimas da Tragédia de Santa Maria) em São Paulo, afirma que a conscientização e a condenação dos culpados são os principais meios para evitar que situações semelhantes voltem a ocorrer. “Todos devem ser punidos para que os gananciosos, inescrupulosos e inconsequentes saibam que, se fizerem algo parecido com aquilo, serão punidos.” Atualmente, nenhum dos oito réus estão presos. Quatro deles – os sócios da Kiss Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão – chegaram a ficar na cadeia, mas foram liberados em maio. O processo está em fase de audiências e não há previsão para a realização do julgamento.

Carvalho diz que é preciso cobrar das autoridades e da iniciativa privada medidas que garantam a segurança em locais que reúnem alto número de pessoas. “Estamos correndo riscos diariamente. O Memorial da América Latina, recentemente, pegou fogo. Foi sorte não ter ninguém dentro”, lembra. O consultor se refere ao incêndio no auditório Simón Bolívar, localizado dentro do complexo cultural, que ocorreu no fim de dezembro, na Capital.

Embora o incêndio na Kiss tenha sido iniciado depois que o vocalista da banda Gurizada Fandangueira acendeu sinalizador durante show, Carvalho não considera o músico o principal culpado pela tragédia. Para ele, os maiores responsáveis são os representantes do poder público, que tinham obrigação de fiscalizar e punir as irregularidades – 29, ao todo, segundo o inquérito instaurado pelo Ministério Público. Em seguida, culpa os donos da boate, que mantinham o local em más condições de uso – sem saída de emergência e extintores de incêndio suficientes, superlotado, com sinalização falha e materiais tóxicos no revestimento do teto, o que gerou gases que provocaram asfixia.

O consultor considera que a pessoa que comprou o sinalizador também tem parcela considerável de culpa, já que o artefato servia para ser utilizado em locais externos. “Mas o fogo poderia ter começado por curto-circuito ou outro problema. A casa deveria prevenir isso.”

CONGRESSO
Acaba hoje o 1° Congresso Internacional Novos Caminhos – A Vida em Transformação. O evento, em Santa Maria, começou no sábado e tem o objetivo de debater temas como segurança, prevenção, saúde, atendimento psicossocial e justiça.

Em um dos painéis, Carvalho irá apresentar gráfico que produziu sobre a evolução no número de mortes provocadas por incêndio em casas noturnas e outros estabelecimentos destinados ao entretenimento. Desde a década de 1940, cerca de 3.326 pessoas morreram nesses locais em consequência do fogo.

Antes de Santa Maria, o Brasil teve outro caso emblemático, o do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, em 1961. Foram registradas 503 vítimas fatais.


Pai de jovem morto se apega à solidariedade para superar dor

O apoio e a solidariedade de amigos nos momentos difíceis motivam o consultor de informática Paulo Carvalho.

No dia do incêndio, em 27 de janeiro do ano passado, a ajuda dos outros familiares foi marcante. O pai de uma amiga de Rafael que mora em Santa Maria deixou a filha, que sobreviveu, em um hospital da cidade e, em seguida, passou o dia todo ao lado do corpo do jovem. “Foi ele quem fez o reconhecimento. Agiu como se fosse pai dele.” Rafael e a garota haviam se conhecido durante intercâmbio que fizeram há seis anos.

A vontade de ajudar o próximo era uma das virtudes de Rafael, conta o consultor de informática. “Quando começou o tumulto, ele tentou proteger as amigas para evitar que fossem pisoteadas.” Carvalho lembra que muitos dos jovens morreram ao voltar para o interior da casa noturna para tentar resgatar colegas.

Apesar da dor, Rafael é lembrado por familiares e amigos pela alegria de viver. No apartamento onde morava, duas fotos grandes chamam a atenção. Em uma delas, o representante comercial posa com a Sky Tower ao fundo, na Nova Zelândia. Em outra, que leva a palavra “obrigado” na parte superior, o garoto se divertia com uma câmera aquática no mar, na Austrália.

O respeito por Rafael e por sua paixão ao São Paulo Futebol Clube era tão forte que, no dia de seu enterro, amigos que torcem para times rivais vestiram camisas do Tricolor paulista e entoaram a plenos pulmões o hino do clube do Morumbi. Em fevereiro de 2013, familiares postaram em uma rede social foto no antigo setor vermelho do Estádio Cícero Pompeu de Toledo segurando faixa com a mensagem: “Rafa, nós continuamos torcendo por você”.

A mãe de Rafael, a professora aposentada Fátima de Oliveira Carvalho, busca tirar ensinamentos positivos com a tragédia. “Nos tornamos mais fraternos, com mais fé, além de conhecermos pessoas ótimas, com as quais jamais teríamos contato. Imagino que os frutos disso farão com que, um dia, Santa Maria seja uma cidade melhor.”


Prefeituras da região fecharam 14 casas noturnas em 2013

Em um ano, 14 casas noturnas foram fechadas pelas prefeituras da região por falta de alvará ou de condições adequadas de funcionamento. A maior parte (oito) estava localizada em Santo André. São Bernardo lacrou quatro estabelecimentos, enquanto Mauá e São Caetano interditaram um cada. Em Diadema e Ribeirão Pires não houve proibição de funcionamento. Rio Grande da Serra não informou.

Entre as principais mudanças adotadas pelo poder público regional desde a tragédia na Boate Kiss, a principal foi observada em São Bernardo. A cidade aprovou, em junho, lei municipal que regulamenta o funcionamento de espaços com grande concentração de pessoas. Entre as exigências para locais que recebem mais de 250 visitantes está a obrigatoriedade de exposição ao público do AVCB (Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros) válido e com indicação da capacidade máxima. As demais prefeituras garantem manter o rigor no monitoramento.

Segundo o Corpo de Bombeiros, em 2013, 17.601 fiscalizações foram feitas no Estado; 3.934 estabelecimentos tiveram irregularidades constadas, 29 foram punidas com cassação do AVCB e 76 foram interditadas pelas prefeituras. A corporação não forneceu ao Diário os dados específicos do Grande ABC.
 




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