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Crianças passam frio e fome
Por Alceu Luís Castilho
Especial para o Diário
08/06/2006 | 08:09
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Esfriava no gramado do Congresso, no fim da tarde de terça-feira em Brasília, e Douglas de Freitas, de apenas cinco meses, era o retrato do país. Nos braços do pai, e ao lado das irmãs Vitória e Ana Carolina, de 4 e 6 anos – ambas com saias e tops curtos –, o bebê estava enrolado em alguns panos, cercado de PMs. Sua única sorte era estar no período de amamentação. À 1h da quarta-feira, em plena Delegacia da Criança e do Adolescente em Brasília, sob a responsabilidade do Estado, Ana e Vitória ainda não tinham se alimentado. Estavam sem comer desde a manhã do dia anterior.

A saga dos sem-terrinha detidos pela polícia – dez crianças e 32 adolescentes – mostrou que a irracionalidade no Planalto não se restringiu aos sem-terra do MLST que invadiram o Congresso, depredaram patrimônio público ou agrediram seguranças. Do pôr-do-sol com tintas militares até a madrugada faminta, os sem-culpa foram duplamente vítimas: da negligência de pais ou líderes, que os levaram a uma batalha campal em plena sede do Legislativo, ao descaso inclassificável do poder público, em suas várias esferas.

Douglas, Vitória e Ana saíram de Itaderaí (GO), a seis horas da capital federal. Divino de Freitas, pai dele e padastro das meninas, contou, no fim da tarde, que todos estavam sem comer desde as 4h. “No acampamento estamos há quatro meses sem receber cestas básicas”, disse. Filho de um policial militar de Goiás Velho, já falecido, Divino ficou preso no ginásio Nilson Nelson, enquanto Divina Sebastiana de Souza acompanhava os três filhos à Delegacia da Criança e do Adolescente.

Desde o fim da tarde, no gramado, as crianças e adolescentes foram tratados indistintamente, em meio aos mais de 500 presos, a mando do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Ficaram no fim da fila, não tiveram ônibus separados, amparo de promotores da infância, assistentes sociais ou atenção da mídia. Ao entrarem nos ônibus da PM, ouviam dos policiais, como todo mundo: “Senta, abaixa a cabeça e põe os braços para a frente”.

Ketlen, com 9 anos e golfinhos desenhados no lenço sobre a cabeça, saiu na manhã da segunda-feira de Açailândia (MA), para chegar às 11h de terça-feira em Brasília. “Trouxe porque o sonho dela era conhecer Brasília”, conta a avó, Maria Gorete de Sousa. Para participar da invasão na Câmara, Gorete deixou a menina com uma vizinha. “Estou assustada”, disse Ketlen no início da noite, enquanto os PMs fechavam cada vez mais o cerco sobre os sem-terra, encurralados. “Tenho medo desses policiais”. Se estava gostando de Brasília? “Estava”.

Somente às 20h os policiais terminaram a prisão em massa. Foram poupados de presenciarem por muito tempo a cena de uma multidão amontoada em um ginásio, pois, cerca de duas horas depois, foram com as mães ou responsáveis – mas não os pais, por motivos que ninguém soube explicar – para a delegacia. A assistente social do SOS Criança, do governo distrital, chegou somente às 22h30. “Só fui avisada agora”, disse Ana Alice Carter.

Pouco depois chegava o representante da Justiça, o comissário Eustáquio Coutinho – cerca de sete horas depois do início da confusão, transmitida nacionalmente. Em sua sala, o delegado-chefe José Adão Rezende declarava-se impotente diante do frio e fome das crianças. “Você quer que faça o quê, encomende lanches do McDonalds? Que eu leve todos para o sofá da minha casa?”

Comida de presídio – Do lado de fora da sala estavam amontoados as 13 adolescentes, uma delas grávida, e os 19 rapazes (entre 12 e 17 anos). Eles só saíram à 1h45 de quarta-feira, após prestarem depoimento, em que negaram ter conhecimento de planos para a invasão. “Você ainda deu sorte”, disse depois ao delegado o coronel Weslei Maretti, comandante de toda a operação policial, pelo governo do DF. “Lá no ginásio ninguém quis falar nada”.

Horas antes de os adolescentes serem liberados, o delegado Rezende adiantava que isso ocorreria. Mas era preciso “cumprir as formalidades”. O descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente prosseguia sem ressalvas, para o desespero de Amarildo Fiorentini, funcionário da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. “Não sei o que fizeram no Congresso, pois estava viajando e vim direto para cá. Mas nunca vi uma coisa absurda dessas. Isso me transforma em uma pessoa impotente, que não acredita mais em nada”.

Amarildo viu os adolescentes amontoados no chão da delegacia e as crianças tremendo de frio no ônibus. O presidente da Câmara, Aldo Rebelo, enviou vários funcionários ao local, entre eles a relações públicas Silvia Mergulhão e o coordenador administrativo Pedro Pellegrini, todos com o mesmo discurso do delegado Rezende. “A culpa é dos pais, que os colocaram nessa situação”.

A ausência de parlamentares só não foi completa porque, no gramado do Congresso, três deputados do Psol – Maninha (DF), João Alfredo (CE) e Ivan Valente (São Caetano) – e um do PT – Paulo Rubens Santiago (PE) – acompanharam a megaprisão. “Só vi algo assim em 1969, quando estudava na UnB e saímos todos de mão para cima, em fila indiana”, contava a deputada Maninha.

A força do anonimato – Na cidade em que 81 senadores alternam diariamente as sessões no plenário com o suculento cafezinho da Casa, os 42 adolescentes e crianças seguiram com fome até a 1h, quando finalmente chegou a quentinha: arroz, batata, salsicha e farofa, diretamente enviados do presídio da Papuda. “Nenhum outro lugar em Brasília teria 500 quentinhas”, alegaram os representantes da Câmara.

Mergulhão e Pellegrini logo tomaram a iniciativa de distribuir as marmitas. Desistiram, pois estavam quentes demais. Todos decidiram então que se comeria no Guará, na sede do MLST, para onde finalmente mães e crianças foram liberadas. Os adolescentes iriam depois para um abrigo – vários deles sob o risco de por lá ficar, por falta de documentação e presença dos responsáveis em Brasília. Ao mesmo tempo em que chegava a comida de presidiário, eis que finalmente foram distribuídas roupas – agasalhos, casacos, camisas de manga comprida, moletons. O suficiente, porém, só para abrigar as dez crianças. Diante da curiosidade do repórter pela demora, a surpresa: nada foi enviado pelo SOS Criança. “Somos vizinhos”, declararam os anônimos doadores voluntários. “Vimos a situação no Congresso e decidimos, por causa das crianças, ver o que estava acontecendo”.

Sempre muito sintética, a assistente social Ana Carter esclareceu prontamente, ainda que com tom ligeiramente sarcástico, o motivo de o Estado não ter fornecido os agasalhos: “Porque não temos”.




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