Cultura & Lazer Titulo
Pimentões coloridos e indefiníveis
Silvio Lancellotti
Especial para o Diário
25/03/2007 | 07:05
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Mesmo para um eventual especialista, definir o pimentão, na botânica ou na gastronomia, parece uma tarefa inglória. Provém da vastíssima família das solanáceas, que abriga, por exemplo, inúmeras pimentinhas, a berinjela, o jiló, a jurubeba, o tomate – e, até mesmo, a batata e o tabaco, mais uma série de plantas definitivamente venenosas. Provém, ainda, do gênero Capsicum, que igualmente ostenta uma enormidade atordoante de espécies diferentes, do pimentão propriamente dito à dedo-de-moça, aos chilis todos, à malagueta.

A quem imputar a confusão? A ele, Cristóvão Colombo (1451-1506), o descobridor da América – que, ao desembarcar no Caribe, diante dos frutos do gênero , de múltiplos tamanhos, batizou aqueles menorzinhos de “pimento” e os mais alentados de “pimentón”. Ironia: os menorzinhos ardem em contato com a mucosa da boca e com as papilas gustativas. Os alentados não produzem o mesmo efeito. Por quê? Como sempre, a natureza explica.

Ocorre que cabe aos pássaros, basicamente, a propagação das sementes dos frutos do gênero, propagação mais complexa em relação aos pequenos do que aos grandões. E, para que a multiplicação acontecesse sem empecilhos, a natureza considerou fundamental impedir que os mamíferos se afeiçoassem aos menores e lhes impôs uma dosagem bastante exagerada de uma substância fitoquímica de nome Capsaicina, responsável pela sensação de queimação. Os pássaros dispõem de uma curiosa propriedade biológica – não reconhecem a Capsaicina, enquanto que os mamíferos, como o homem, depressa reagem à sua agressão. Paralelamente, o pimentão, nos seus vários tipos, de proliferação mais fácil, desnecessitado da ajuda das aves, já nasce sem a tal substância.

Encontra-se pimentão de várias cores: o alaranjado, o amarelo, o creme, o castanho, o verde, o vermelho, o violáceo; até o branco e o preto, raríssimos mas possíveis. Ao surgir, no entanto, o pimentão é sempre verde, ou imaturo. Mantém a tonalidade até cerca de 120 dias depois de brotar. Daí, a partir dos trinta dias subseqüentes, principia a adquirir um novo aspecto.

As cores que assumirá, então, dependem de uma série de fatores: a sua matriz genética; as condições do seu solo; da região de plantio; do regime de ventos e de chuvas; das mudanças de temperatura; e das mutações saudáveis, ou sem riscos, provocadas pelo engenho dos agrônomos que os acondicionam em estufas.

O verde, óbvio, possui um sabor mais ácido, e mais pungente. Depois de amadurecer, contudo, paulatinamente se torna mais adocicado, em função dos mesmos fatores que transformam a sua tonalidade. Aliás, prega uma lenda tola que o pimentão é um produto de digestão difícil, em particular depois da refeição da noite. Culpa, segundo tal bobagem, da sua pele superficial e dos seus brancos interiores. Eu anistio a pele, embora haja alquimias que solicitam a sua retirada. Mas, concordo com a punição dos brancos. Tratam-se de partes que sequer chegaram aos primeiros limites do amadurecimento, de partes que não evoluíram corretamente em relação ao restante da polpa dos frutos. Em qualquer situação na culinária elimine as sementes e os brancos interiores.

Nesta página, além das dicas de costume, eu proponho duas maravilhas nas quais o pimentão protagoniza. Uma caponatina, impecável como couvert de restaurante, ou como um antepasto, ou mesmo como a companhia de um prato de peixe ou de carne. E um maravilhoso contra-filé, cuja formulação o meu saudoso pai me ensinou a fazer, cinco décadas atrás, e que congrega três cores de pimentão e mais duas das solanáceas, a dedo-de-moça e o tomate.

Saiba mais

Usos do pimentão sem a pele
Há três maneiras de se tirar a pele de um pimentão. Uma, espetá-lo num garfo longo e passá-lo, por alguns instantes, sobre a chama do fogão. Outra, levá-lo à fervura, num minutozinho, e promover um imediato choque térmico em uma bacia com água e gelo. Enfim, colocá-lo no forno e, também, utilizar o velho truque do choque térmico. Pimentão sem a pele serve como um belo antepasto, meramente banhado com azeite e na parceria de lâminas de alho. Ou, para se fazer um coulis, ou uma base de molho, ou de uma sardella. No caso de um coulis, basta processar a polpa com o azeite necessário e os temperos de plantão. Para a sardella, o coulis, ou a pasta do pimentão, se mescla à pimentinha e aos filezinhos de anchovas, esmagados em um pilão.

Páprica, paprika, pimento, colorau
A Espanha e a Hungria reivindicam a invenção da páprica, combinação de diversos tipos de pimentão desidratado e pulverizado. Não vou me envolver nesse debate – até porque os astecas e os maias, à chegada de Colombo ao Caribe, já dispunham dos seus chilis absolutamente impactantes. Prefiro, aqui, informar que a intensidade do sabor da páprica depende da sua composição. Naquela mais doce, mais pimentão e menos pimentinha. Naquela mais radical, mais pimentinha e menos pimentão. Na Ibéria, a páprica se chama “pimento” desde os idos de Colombo. Na Hungria, perdão, perdão, bem depois, virou “paprika”, uma derivação da palavra “papar”, de origem eslava, que significa ardor. O colorau de Portugal e do Brasil é uma espécie de páprica.

Receitas

Caponatina Siciliana
Ingredientes, para uma pessoa: 2 colheres, de mesa, de azeite de olivas. 6 colheres, de mesa, de vinagre branco, de vinho, de ótima qualidade. 2 colheres, de sopa, cheias, de açúcar. 1 cebola roxa, média, cortada em oito gomos, na vertical. 12 tiras de pimentão amarelo, sem as sementes e sem os brancos internos, 1cm x 3cm. 12 tiras de pimentão verde, idem. 12 tiras de pimentão vermelho, idem. 4 rodelas de berinjela, com a casca e com cerca de 2cm de espessura, divididas em quatro partes. 4 rodelas de abobrinha, idem. 1 colher, de sopa, cheia, de uvas passas, das douradas, sem caroços. 8 azeitonas pretas, das graúdas, cortadas em lascas. 2 quadrados de fatias de pão italiano, sem as cascas, 5cm de lado e 5mm de espessura, pré-tostadas no forno. Pitadas de orégano. Mais azeite, vinagre e açúcar, de acordo com a necessidade.
Modo de fazer: Numa frigideira, aqueço o azeite e o vinagre. Despejo o açúcar. Mexo e remexo, até obter uma espécie de calda. Rebaixo o calor ao mínimo viável. Na calda, murcho a cebola, o pimentão amarelo, o pimentão verde e o pimentão vermelho. O tempo dependerá da potência do seu fogão – não permita que as cores se esmaeçam, ok? Agrego a berinjela e a abobrinha. Viro e reviro, com a maior delicadeza. Espero que a berinjela e a abobrinha absorvam o calor e o sabor da calda. Caso isso ocorra antes de a abobrinha e a berinjela se cozinharem adequadamente, agrego mais azeite, mais vinagre – e mais açúcar. É crucial que o sabor final fique meigamente agridoce. No último instante, incorporo as uvas passas e as lascas das azeitonas. Remisturo. Sirvo a caponatina, como revela a fotografia, com as duas fatias de pão italiano.

Contra-filé nas solanáceas
Ingredientes, para uma pessoa: 250ml de água fresca. 1/4 de tablete de caldo desidratado de carne, dos que se compram em qualquer mercado. 2 colheres, de mesa, de polpa peneirada de tomates. 1 colher, de sopa, de molho inglês, do tipo Worcestershire, de muito boa qualidade, preferivelmente aquele importado. 12 tiras de pimentão amarelo, sem as sementes e sem os brancos internos, 1cm x 3cm. 12 tiras de pimentão verde, idem. 12 tiras de pimentão vermelho, idem. 200 g de contra-filé, dois dedos de espessura, bem aparado. Sal. Pimenta-do-reino. 1 pimentinha, do tipo dedo-de-moça, sem as sementes e sem os brancos internos, cortadinha em lascas. Uma pelotinha de manteiga. Três rodelas de batata, com a casca, pré-douradas em azeite de olivas.
Modo de fazer: Levo a água à fervura. Dissolvo o tablete de caldo de carne. Reduzo o volume à metade. Rebaixo o calor. Agrego a polpa e o molho inglês. Misturo e remisturo. Acrescento os três pimentões. Mexo e remexo. No calor bem suave, murcho os pimentões e reduzo o líquido de fundo, quase que completamente. Massageio o contra-filé com o sal e com a pimenta-do-reino. Levo a uma grelha ou a uma frigideira ranhurada, dois minutos de cada lado. Condimento os pimentões com o sal necessário e com a pimentinha vermelha. Arredondo o resultado com uma pelotinha de manteiga. Sirvo, como na foto, os pimentões nervosamente lançados sobre a carne, a batata ao seu redor.



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