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Clarice mulher
21/11/2009 | 07:00
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Para quem tem 1 milhão de entradas no Google e 150 comunidades no Orkut associadas ao seu nome, Clarice Lispector (1920-1977) até parece uma escritora popular, dessas que os viajantes devoram nos aviões para passar o tempo. No entanto, sua escrita enigmática desafia ensaístas à procura de significados ocultos nas palavras criadas por essa mulher, que há 34 anos participou do primeiro Congresso Mundial de Bruxaria em Bogotá.

Em agosto último, o jovem norte-americano Benjamin Moser, 32 anos, lançou livro nos EUA, Why This World, que pode não ter decifrado o mistério de Clarice, mas ao menos ajudou na difusão de sua obra no Exterior. Moser está no Brasil para o lançamento da tradução dessa biografia, aqui chamada simplesmente Clarice, (Cosac Naify, tradução de José Geraldo Couto, 648 páginas, R$ 79), com uma providencial vírgula acoplada ao título, sugerindo que se trata de uma escritora plural.

Simultaneamente, a editora Rocco coloca hoje nas livrarias o livro Clarice na Cabeceira, coletânea de contos comentada por escritores, entre eles seu biógrafo americano. O biógrafo, crítico literário da revista Harper's, participa amanhã de encontro com a escritora Lygia Fagundes Telles, evento que integra o festival literário Balada Literária.

CARTOMANTE - A autora de Ciranda de Pedra foi amiga de Clarice, mas o biógrafo não recolheu suas impressões para o livro, mencionando apenas a pane no avião que transportava as duas para Cali, na Colômbia, em 1974. De repente, o aeroplano começou a chacoalhar e Lygia, assustada, foi tranquilizada por Clarice, que a segurou pelo braço e disse que não se preocupasse, pois a cartomante havia assegurado que ela não morreria num desastre.

De fato, Clarice só viria a morrer três anos depois, às 10h30 de 9 de dezembro de 1977, segurando a mão de outra amiga, Olga Borelli, com quem viveu os últimos anos de sua vida.

Clarice teve muitas amigas mulheres, algumas heterossexuais, como Lygia, e outras homossexuais, como a poeta norte-americana Elizabeth Bishop, que traduziu para o inglês alguns contos seus, além da artista plástica Maria Bonomi, que conheceu em 1958, enquanto a escritora amargava o tédio da vida diplomática. O casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente, então, chegava ao fim. Em mais de uma ocasião, seu biógrafo pisa no acelerador para entender a desilusão amorosa com os homens, a amoralidade de Clarice e sua identificação com os bichos - até mesmo a repugnante barata que a protagonista come em A Paixão Segundo G.H.

INFÂNCIA E ANIMAIS - Moser volta à infância de Clarice para chegar à barata. Nascida em aldeia pobre da Ucrânia, ela escapou de herdar a sífilis da mãe, estuprada num pogrom (ataque maciço com a destruição de seu ambiente).

Sua existência, escreve, não tinha mais razão de ser do que a da barata mastigada pela heroína de A Paixão Segundo G.H. (1964), experiência mística que o biógrafo define como desafio à moral convencional para chegar a Deus. Antes de concluir que a animalidade de sua biografada é também a de seus personagens (como a Joana de Perto do Coração Selvagem), ele cita outro exemplo, o de um filme estrelado por Barbara Laage (1920-1988) em que a atriz francesa observa um garanhão copulando com uma égua (trata-se de O Corpo Ardente, mas o biógrafo parece desconhecer o filme, rodado em 1967 por Walter Hugo Khouri).

Clarice escreveu que se identificava mais com o cavalo do filme que com Barbara Laage. Moser acha que ela se refere ao fato de ser vista como um bicho de zoológico por quem a classificava como exótica, queixa registrada numa carta ao escritor Lúcio Cardoso.

No entanto, ela poderia estar relacionando seu casamento falido ao da personagem do filme, uma mulher burguesa traída pelo marido, que inveja a virilidade do cavalo - e não seria de todo absurdo ver nessa vontade de potência a frustração de não poder, paradoxalmente, como mulher, satisfazer os desejos do homem que mais amou na vida, justamente um escritor homossexual, Lúcio Cardoso.

ASSÉDIO SEXUAL - Clarice, mulher bonita, sofreu com o assédio sexual de ex-presidentes - Jânio Quadros rasgou seu vestido ao apalpá-la após a cerimônia em que recebeu um prêmio por A Maçã no Escuro, no mesmo ano (1962) em que teve seu último caso amoroso com um homem, o poeta Paulo Mendes Campos, casado com uma inglesa. Também em 1962 ela conheceu a poeta Elizabeth Bishop, que não gostou muito de seus romances, mas adorou seus contos tchecovianos e, claro, a beleza física de Clarice.

Moser reproduz cartas da poeta ao amigo Robert Lowell, reclamando da indiferença da escritora brasileira, apesar de seus esforços para promover os livros dela nos EUA. Não era indiferença, era depressão.

Moser, sempre relacionando vida e obra, a retrata como uma dependente de tranquilizantes, por vezes cansativa, pouco educada com os amigos e, fundamentalmente, uma mística na tradição da cabala judaica.

A biografia Clarice, de Benjamin Moser, será lançada na segunda-feira, às 18h, na Livraria Cultura, em São Paulo, com a presença do autor, que participa de uma mesa com o escritor e também biógrafo Humberto Werneck.

Moser encontra-se amanhã às 14h30, na Livraria da Vila, também na Capital, com Lygia Fagundes Telles. O encontro integra a programação do festival Balada Literária.




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