Cultura & Lazer Titulo
Passagem marcante
Por Sara Saar
Do Diário do Grande ABC
09/05/2010 | 07:04
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Uma criança curiosa sempre aprende algo que lhe interessa e, por vício, continua até o fim da vida. É assim que o artista plástico Gontran Guanaes Netto, 77 anos, justifica a sua trajetória, guiada pela pintura.

E, apesar de ter vasta obra reconhecida no Exterior, lança desafio ambicioso para encerrar a carreira: sair de Itapecerica da Serra, interior de São Paulo, e voltar a Paris para produzir o melhor dos seus trabalhos. Tudo porque foi acolhido na Europa, durante os 16 anos de exílio, e lá tem espaço para afirmar a cultura brasileira.

"Vou a trabalho. Não é para tomar vinho, não", frisa o artista, em tom bem-humorado. O projeto já está definido: "Quero fazer obras realistas a partir de reminiscências brasileiras. Quero transformar em quadro tudo o que está no meu inconsciente", explica.

Se tudo ocorrer como o planejado, esta deve ser uma das últimas oportunidades de encontrar Gontran no Brasil. Em junho, ele viaja para a França com o objetivo de conseguir um flat na Cidade Internacional das Artes. Se obtiver êxito, só retorna ao País para realizar a mudança definitiva.

VIDA
Natural de Vera Cruz, interior de São Paulo, Gontran se interessou pela arte por inveja, conforme brinca. Ao ver desenhos de um colega do primário, percebeu que também seria capaz. "E o trabalho já rendia alguma coisa: as meninas deixavam que eu sentasse perto delas", conta, aos risos.

Sem escolaridade regular por viver a adolescência enfermo passando por sucessivas operações, conseguiu entrar na Fundação Belas Artes como aluno livre quando se mudou para São Paulo, aos 18 anos. Mas, em cerca de um ano, foi expulso por participar da campanha O Petróleo é Nosso.

Também lecionou em uma universidade, na Capital, nos anos 1960. Estava em sala de aula, como professor de Desenho e História da Arte, quando foi levado, sob a mira de metralhadoras. "Me prenderam. Havia uma mulher nua pendurada no pau de arara. Era só para meter medo. Não fizeram nada comigo", lembra.

Quanto à perseguição, o artista apenas diz que "as pessoas eram presas por qualquer motivo". Depois de ter sido capturado e libertado duas vezes, percebeu que já era hora de sair do País. Pensava em ir para o Canadá, mas ganhou passagens para França, onde fez carreira a partir de 1968.

OUTROS ARES
Na Europa, Gontran logo conquistou respeito por produzir trabalhos muito diferentes dos que lá eram encontrados. Exemplo disso foi em 1971, quando fez a primeira participação no Salão Jovens Pintores, que recebia obras sobre a temática trabalho.

Enquanto alguns discutiam o assunto a partir da modernidade da época, por meio do raio laser por exemplo, o brasileiro de arte realista optou por desenhar os bóias-frias em série de oito quadros, intitulada Enquanto Vocês Estão Aí, Nós Ainda Estamos Lá.

Era assim que afirmava a cultura brasileira em outro continente. "Fiz caras com pés no chão e enxadas. Em contraste com as outras obras, politizavam o lugar."

Ditaduras na América Latina foram mote de série coletiva, nomeada Sala Escura da Tortura (1973). Sob orientação de Frei Tito, trabalhou o Grupo Denúncia, que reunia os argentinos Julio Le Parc e Alexandre Marcos, o uruguaio Gamarra, além de Gontran.

Exilados, todos - cada um com estilo próprio - pintaram sete cenas de tortura enquanto observavam fotografias, feitas a partir de encenações de alguns artistas.

Em 1981, o brasileiro surpreendeu mais uma vez em exposição coletiva de autorretrato. Na contramão de quem se desenhou, Gontran decidiu pintar caipiras, enumerados de um a seis. "Cada um era de uma região brasileira. Eu queria mostrar que me identificava com eles. As obras sempre davam resultado cultural e político", lembra.

Mesmo sendo professor vitalício do Ensino Superior francês desde 1976, Gontran resolveu retornar à terra natal entre 1984 e 1985. "Vim uma vez. Fui voltando aos poucos. Decidi porque achava um absurdo fazer imagens de caipiras em Paris, tomando vinho", compara.

No Brasil, assinou painéis muralistas na defesa da arte pública. Em 1989, em comemoração aos 200 anos da Revolução Francesa, fez a obra O Povo e a Liberdade na estação Marechal Deodoro, do Metrô de São Paulo. Devido ao sucesso, mais tarde foi convidado para pintar a Estação Corinthians/ Itaquera e fez o trabalho Catedral do Povo.

No mês passado, Gontran ainda fez viagem a Brasília porque recebeu convite do Ministério da Justiça para expor trabalhos referentes à ditadura. As partes ainda estão em processo de negociação.

REGIÃO
Em São Bernardo, Gontran tem um grande colecionador de seus trabalhos. É o sobrinho Mauro Guanaes, que tem dezenas de quadros espalhados pelas salas de sua empresa, a Top Publishing Comunicação Visual. "Pretendo montar, aqui, um centro cultural, que receba artistas da região. Isso ainda neste ano", espera o sobrinho.

A primeira intervenção de Gontran no Grande ABC ocorreu em 2008, quando foi convidado para estar presente na ocupação dos estudantes na Fundação Santo André.

Além de levar cerca de 40 quadros para o centro universitário, com o objetivo de politizar os alunos, colaborou com a idealização da Escola-Livre de Ciências Humanas e Artes, que funciona até hoje.

Mas agora é momento de despedida. Gontran Guanaes Netto está decidido a viver na Europa. Desta vez, por livre-arbítrio. "Lá, as obras podem se desdobrar em mil possibilidades de apresentação", aspira.

Mostra
Obras que foram consideradas perdidas, durante décadas, por Gontran Guanaes Netto integram a exposição Mande Notícias do Mundo de Lá - Arte e Política na Diáspora, em cartaz na Fundação Santo André (Avenida Príncipe de Gales, 821. Tel.: 4979-3300) até 25 de junho.

Entre os trabalhos expostos, há 11 desenhos que foram feitos em papel com lápis de cor, durante os anos 1970. "Ilustram trabalhadores em atividades variadas, da agricultura à metalurgia, em diferentes partes do mundo", explica Rodrigo Chagas, um dos curadores da mostra.

Inéditas no Brasil, as imagens haviam sido vistas pela última vez em 1977, na exposição Rue 16 Lile, hospedada na França. O artista voltou a saber das obras em janeiro, quando visitou Paris - depois de 25 anos distante - e reencontrou um amigo, que guardou e lhe entregou o material. "Fiquei surpreso como fui recebido. Voltei como um grande companheiro que retorna à casa paterna", compara.

Outros materiais, doados ao centro universitário, ainda podem ser conferidos. "Trata-se de documentação da própria vida do artista. Há desde convites que ele recebeu para expor em outros países como Cuba, até fotografias que utilizou para pintar alguns quadros", exemplifica Chagas.




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