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Sossego de vida

Sossego tem sido objeto de desejo nos últimos tempos...

Por Rodolfo de Souza
Do Diário do Grande ABC
23/09/2013 | 07:00
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Sossego tem sido objeto de desejo nos últimos tempos, sobretudo quando o indivíduo bate a casa dos cinquenta.

Mesmo assim a tumultuada paisagem urbana ainda é o nicho preferido de muitos. O meu também, confesso. Local de conforto, residência dos prazeres da carne sem os quais fica difícil tocar os dias. Mas para nela habitar é preciso saber conviver com a urgência em cada movimento das pessoas com seus veículos, e computadores, e celulares, e compromissos, enfim. Tudo é mesmo muito rápido, ou antes, aspira à rapidez. Rapidez sufocada pelo atropelo nas calçadas, pelas filas, ou quando o engarrafamento é impiedoso. O trânsito, aliás, sempre para. Para nos horários de pico, por acidente, pela chuva, pelo mau humor, sem razão aparente. Confusão de máquinas a minar o descanso.

Mesmo assim o sossego tenta impor sua presença minguada aqui e ali, como se dissesse ao mundo: eu existo! Olhem para mim!

E foi talvez para atestar esta perseverança que, numa bela manhã de trânsito normalmente conturbado mas fluindo, que o sinistro aconteceu, tentando sabotar o meu plano de não me atrasar para o trabalho.

O que há? – berravam as buzinas enfadonhas diante do tráfego repentinamente parado. Havia um caminhão na frente de todos e a suspeita recaia sobre ele, o pobre de aparência um tanto gasta. Motoristas afoitos, a despeito da intimidade com os congestionamentos do nada, se revoltavam, fazendo muito barulho para com ele empurrar o que causava o entupimento na via. É notória essa impaciência quando se instaura o caos e carros se amontoam no afã de sair em disparada.

Logicamente que a minha brasilidade não deixou por menos e logo constatou que havia uma saída. Imagine, um espaço no passeio, à direita, com guia rebaixada! Nem pestanejei, empreendi fuga por ali mesmo (papo de polícia). Devagar fui transpondo o obstáculo que não sinalizava defeito qualquer, o que muito me intrigava. Na sua dianteira, aparentemente ninguém.

Quando venci os poucos metros de sua lateral, o motivo da súbita parada, finalmente se expôs, grosseiro, petulante, engraçado. Um catador de papéis estacionara seu enorme carrinho abarrotado bem no meio da avenida, parando o trânsito, somente para acender o cigarro. Isso mesmo, para acender a bituca resgatada do asfalto a tempo de ser apreciada com muito gosto. E o vento, cheio de maldade, soprava no homem com seu isqueiro quase vazio, retardando ainda mais a liberação do tráfego.

Não consegui conter a gargalhada diante da displicência do outro. E continuei a rir ao conferir no retrovisor a luta do motorista do caminhão que seguia pelo passeio, no mesmo trajeto que eu fizera para me safar. Um cordão de veículos seguia-o, todos contornando suavemente o sujeito que lutava ainda com o isqueiro velho, indiferente ao sacrifício imposto na avenida.

Segui o meu caminho, então, recordando um caso semelhante em que um senhor me fez parar o carro para que atravessasse a rua. Trajava roupa com corte especial para pessoas que ultrapassaram há muito os setenta: paletó, colete com a corrente do relógio à mostra, chapéu. A bengala, concebida para o auxílio na locomoção, serviu-lhe antes para raspar, distraído, qualquer coisa grudada no asfalto. Permaneceu assim, bem no meio da movimentada e estreita rua central, por longo tempo, absorvido na sua tarefa de remover a incômoda sujeira. Sequer olhou para mim, muito menos para os demais carros que se acumulavam. A cantoria das buzinas logo iniciou protesto veemente. E o homem, talvez surdo ou presente noutro mundo que não este, fazia-me rir tal qual rira no dia do catador. Principalmente porque só deixou o local ao término da limpeza. Dois episódios em que o sossego, de alguma forma, fez valer a sua presença e ainda massageou o meu senso de humor.

* Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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