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Seis, ladrão!

Não sei o que estava mais divertido: se a surra que estávamos conseguindo dar no trio adversário ou ouvir os sussurros de espanto

Por Carlos Ferrari
02/10/2010 | 00:00
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Não sei o que estava mais divertido: se a surra que estávamos conseguindo dar no trio adversário ou ouvir os sussurros de espanto quanto ao fato de nós, cegos, jogarmos truco. Ocasionalmente, formávamos naquele momento, um trio formado por dois cegos e uma pessoa sem deficiência, jogando contra três, como dizia o Ramiro da pastelaria, "perfeito das vista". O baralho, também marcado em braille, e algumas estratégias de sinais com os pés por de baixo da mesa, tornava o jogo totalmente possível para todos nós e a exclusão só ocorria para aqueles que perdessem três rodadas primeiro, já que deveriam dar lugar para outro trio na mesa.

O jogo de truco tem como principal charme a possibilidade de blefar. Se ‘truca' então, quando se tem carta boa para bancar a jogada, ou quando não se tem nada e a única alternativa é gritar para assustar o adversário. O risco nesse caso é se o opositor tiver alguma coisa, ou resolver fingir também pedindo seis, transformando o jogo em um grande teatro.

Em um dos momentos da noite que conto aqui, resolvi apostar em minha capacidade de interpretação. Sem carta nenhuma na mão e já perdendo o jogo, a alternativa foi pedir seis, como se diz no interior "seis, ladrão!". Chamou-me então a atenção o aumento dos rumores de espanto daqueles que acompanhavam estarrecidos a novidade de cegos jogando truco. "Mas olha só, como pode? Ele teve coragem, ele trucou!"

Lembrando dessa ocasião, decidi escrever para convidar vocês, leitores, para pensar na inclusão como um grande jogo de truco: sem muitas regras, medos, ou cerimônias, compreendendo que o que vale realmente é a sinergia produzida por todos envolvidos no processo. Ter coragem para 'trucar', para jogar e, da mesma forma, estudar, trabalhar, são todos pré-requisitos fundamentais para vivermos em sociedade.

Os caras que suspiravam com admiração, pouco tempo depois estavam na mesa jogando de igual para igual, sem qualquer tato ou cuidado com quem não enxergava. Havia ali um respeito mútuo e a vontade de simplesmente estar juntos para brincar como crianças despidas de qualquer preconceito.

Muitas vezes, a sociedade acaba excluindo por excesso de zelo, colocando aquele com uma única limitação na condição de demandante de cuidados intermináveis. Assim, a discriminação manifesta-se não apenas em situações caracterizadas pelo desprezo, pela agressividade, ou pelas ironias. Também aparece no excesso de cuidados, na descrença diante de conquistas e na proteção desnecessária e gratuita.




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