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‘Agora vivemos um momento sem definição’, diz o jornalista João Cassiano
Ademir Medici
Do Diário do Grande ABC
29/03/2021 | 00:10
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Nario Barbosa/DGABC


O jornalista João Cassiano teve que sair do País no período do ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’, no auge do movimento militar. Tinha 25 anos e acabara de ser declarado oficial no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva). Um defensor da Pátria, considerado apátrida, ao contrário – como diz – “dos que deram o golpe, muitos deles ainda por aí”. Retornou depois 40 anos, em busca dos seus direitos políticos: “Sou membro do Partido Comunista do Brasil, com muito orgulho”. No currículo, a participação como repórter de Geral (hoje Setecidades) nos primeiros tempos do Diário.

Como se deu a sua vinda para o Grande ABC?
Foi logo após a II Guerra Mundial. Os países ficaram destroçados. O Norte brasileiro também. Se hoje é difícil, imagine como era aquilo em 1944, 1945. Meu pai veio na frente. Era missionário da Assembleia de Deus. Nós ficamos lá. Posteriormente ele mandou buscar a gente. Vim com minha mãe e mais quatro irmãos. Fui registrado civilmente em São Bernardo, três anos depois do nascimento.

Como foram os primeiros tempos por aqui?
Fomos morar numa chácara que ficava no caminho da Vila São José, em São Bernardo. Uma chácara grande, num terreno de 7.000 ou 8.000 metros quadrados. Vivi ali até os 12 anos. Fui aluno de uma escolinha da Vila São José, que funcionava num barraco.

Tereza Delta foi sua madrinha?
Meus pais conheceram o pessoal da Tereza Delta. Como missionário, meu pai era acompanhado por ela. Morei um tempo na casa da Tereza, uma grande mulher. Hoje se fala na luta da mulher, na independência feminina. Tereza Delta, já naquele tempo, conduzia a bandeira do feminismo. Ela foi vereadora, a primeira (e única) prefeita de São Bernardo, deputada estadual. Seu nome foi dado a um viaduto da Via Anchieta. Outro dia fui conferir, parece que tiraram o nome dela do viaduto. Cresci ao lado dos estúdios da Vera Cruz. Convivi um tempo com o Mauricio (de Castro, filho da Tereza, que foi vereador, presidente da Câmara como a mãe e vice-prefeito). Depois busquei o caminho do jornalismo. Tornei-me repórter e nos separamos.

Como foi o início no jornalismo?
Comecei no jornalismo distribuindo panfletos (risos). Tinha 14 anos. Passava pela Rua Marechal Deodoro. Um senhor me deu um bocado de panfletos para distribuir, mediante o pagamento de 10 cruzeiros. Nem sabia o conteúdo. Estava em frente à sede do Sindicato dos Marceneiros, no Centro de São Bernardo. Uma hora a mais, chegou a polícia. Fui recolhido e levado à delegacia, na Rua Américo Brasiliense.

O delegado era o temível Castelo Branco?
Era o Castelo Branco. Mas ele não estava. Estava o subdelegado, o escrivão. Mas ele ( delegado Castelo Branco) sabia o que acontecia, logicamente. Foi ‘show de pancadas’. Me penduraram num ‘pau de arara’ com aquela idade de menino. Vi que não havia jornalista nem rádio que denunciassem tamanha agressividade. Estava resolvido: vou ser jornalista para denunciar.

Como foi o começo de carreira?
Comecei a recolher notícias de times de futebol aos domingos. Pegava resultados das partidas e entregava para a Gazeta e Folha de São Bernardo. O jornalista Onofre Leite me ajudou muito. Foi um professor. Ele me ensinou a redigir, a copidescar, me estimulou a ler muito, a fazer edição nacional e internacional.

O senhor era repórter em São Bernardo. Como surge a oportunidade no Diário?
O Onofre me levou. O Diário estava começando, depois da fase News Seller. Organizava um grupo de jornalistas. Aqui já estavam o José Marqueiz (depois Prêmio Esso Nacional pelo Estadão), Camarguinho (Eduardo Camargo). Lázaro Campos era o chefe da Redação. Pedro Martinelli (hoje um nome nacional e internacional) era o fotógrafo. O diagramador tinha o apelido de Pantera. Veio do Última Hora.

Como era o contato da Redação com a diretoria do jornal?
Havia uma pessoa maravilhosa que era Fausto Polesi. Nós não podemos nos esquecer dele, que deve ser inserido na história do jornalismo do Grande ABC, de São Paulo e, talvez, até da história do jornalismo nacional. Uma estrela, o Fausto Polesi.

Como era o Diário naquele tempo?
A Redação ficava no fundo do prédio da Rua Catequese. Na frente, um grande jardim. Tempo das máquinas linotipos, na base do chumbão, cada uma com seu número. Sabia dos números de todas elas. No fechamento, se deixava um espaço na Primeira Página para as notícias de última hora. O Pantera era especialista nisso. Às 5h da manhã o jornal estava circulando.

E sua militância política?
Já militava na JOC (Juventude Operária Católica). Às vezes vinha de reuniões políticas bem tarde. Procurava o Diário. O último ônibus para São Bernardo saía às 10h da noite. Então eu dormia na área das bobinas. Maravilhoso. Sentia o cheiro das máquinas, do jornal sendo feito, impressores trabalhando.

Qual reportagem de sua autoria publicada pelo Diário que o marcou?
Foi em São Bernardo. A denúncia de um menino na prisão. Enquanto eu conversava e distraia os policiais, o Pedro Martinelli entrou na cadeia e tirou as fotos do menino atrás das grades. Manchete de Primeira Página. ‘Menino chora na prisão’. Deu muito impacto e causou problemas com o promotor, que já tinha implicações comigo e passou a me perseguir.

O jornal dava liberdade a vocês, repórteres?
Absoluta liberdade. Havia a censura política, oficial, mas internamente a liberdade era total. Eu também colaborava com a Tribuna de São Bernardo, do jornalista Jesus Rosário Domingues. Enquanto escrevia, um tenente ficava ao lado. Esse processo era em todos os meios de comunicação. Houve censura, e brava censura.

E sua ação política?
Na JOC fiquei muito amigo de dom Jorge (bispo diocesano), do monsenhor Antunes (vigário geral da Diocese de Santo André, hoje com um instituto que tem o seu nome). Fizemos muitos movimentos sociais, no sentido de buscar liberdade, de ver o ser humano, de transitar, de ir e vir, o que não era compreendido pelo regime. Bastava ter um livro vermelho na mão, você ia preso. Quando programamos o projeto Mini-Rondon em Ribeirão Pires, eu fui o coordenador. Chegam dois agentes. Na mesa estava o livro Geografia da Fome, de Josué de Castro. Levaram o livro e quase me levam preso.

Mas o Projeto Rondon foi criado na ditadura.
Projeto da ditadura, mas através dele pudemos militar nos pontos mais pobres do País. Cuiabá, Dourado, tudo muito pobre, mas não tanto como o Vale do Jequitinhonha, de uma realidade terrível, mas você tinha que ver o carinho daqueles pequenos fazendeiros e aqueles humildes que ali viviam. Quando chegava o pessoal da medicina, da odontologia, da arquitetura, os estudantes, eles nos atendiam muito bem, servindo um queijo gostoso. O Projeto Rondon foi usado pela ditadura para encobrir muitas coisas. O que era de beleza, se perdeu, se transformou.

Depois da experiência no Diário e nos semanários de São Bernardo, qual foi a sua sequência profissional?
Eu tive que sair do Brasil. Participava do Comando de Libertação Nacional. Assumimos algumas situações muito graves para a ditadura. Chegou um momento em que não podia ficar mais. Saí via Paraguai, onde convivi com os cortadores de palmito, um povo que lutava também frente à ditadura (Alfredo) Stroessner, pior que a brasileira. Fui cortar palmito para viver com eles, conhecer a vida deles e depois escrever coisas sobre eles que publicamos no diário ABC Color, de Assunção. Depois, os mineiros me levaram para a Bolívia. Vivi com os mineiros, com o Sindicato dos Mineiros. Nas minas. Fui convidado para a Universidade de San Simon, onde estudamos o teatro de Plínio Marcos e Augusto Boal. Ali iniciei a minha vida de professor universitário e escrevi para o jornal El Diário, já nacionalizado como os demais meios de comunicação. Ali trabalhei até que veio o golpe de Estado na Bolívia. Tivemos que sair. Saíram escritores, poetas, advogados. Fomos para o Chile, depois de passar um tempo, disfarçados, no Peru.

E o senhor militando, trabalhando na imprensa?
Sim. Chegamos ao Equador. Foi maravilhoso. Criamos jornais. Fizemos um seminário de jornalismo moderno na cidade de Cuenca e como conclusão final foi criada a Escola de Jornalismo. Passagens pelas Américas todas, Caribe, Japão, África. Fazia parte da operação Educação para a Paz, da ONU. Aparecíamos onde havia guerra. Trabalhávamos com refugiados. Terminada a guerra, havia o encontro dos soldados de ambos os lados. Emoção pura num estádio lotado no encontro de mães com os filhos e irmãos que batalharam uns contra os outros.

E as coberturas do esporte?
Escrevi para a revista Stadion, do Equador, e para jornais como o Telégrafo. Muitas viagens. Cobri umas 15 copas Libertadores da América, três Copas do Mundo, Jogos Olímpicos. Nas Paraolimpíadas de Salt Lake, nos Estados Unidos, presenciei uma situação humana indescritível. Na prova dos 100 metros finais, seis bons atletas, cada um no seu carrinho. Antes de chegar nos 100 metros, um deles caiu. E o barulho fez com que os que estavam na frente olhassem e voltassem. Pegaram o que estava no chão. Eles se abraçaram. E foram juntos até a reta final.

E o futebol?
O futebol me ajudou muito lá fora. Joguei na Bolívia, Equador, Colômbia. Dirigi times também, em vários países. Carlos Aberto Parreira, quando na Seleção Brasileira, me pedia informações. Eu estava no Equador. Enviava telegramas a ele sobre o Equador, a Colômbia. O mestrado eu paguei com o dinheiro ganho no futebol.

Quando você regressa?
Em 2008. Veio a Constituição de 1988 e a anistia. Preferi não vir, temeroso ao lembrar o que havia passado no Dops, na Rua Tutóia, em São Paulo, com os gritos daquela gente sofrendo. Lecionava em El Salvador, e finalmente tomei coragem e retornei, pensando que seria diferente. Agora é uma espécie de ‘sem definição’, uma situação política que merece ser analisada a partir de um amplo seminário.

Como você define o período do PT no poder?
Não vou falar do PT. Vou falar do governo Lula. Entendemos que o Brasil avançou muito. A quantidade de moradias que foi construída, as novas universidades criadas, as estradas. Foi o governo que mais pôs dinheiro nas Forças Armadas.




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