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Transtorno emocional faz pessoas acumularem objetos sem controle

Síndrome de Diógenes ou disposofobia afeta cerca de 4% da população mundial; maioria dos acumuladores é de idosos

Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
05/10/2020 | 07:00
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Celso Luiz/DGABC


Acumular coisas em casa pode passar de simples hábito ou falta de organização para transtorno emocional grave. A disposofobia (fobia de dispor das coisas) ou a Síndrome de Diógenes (filósofo grego que andava como mendigo e/ou não aceitava ser contrariado) pode afetar 4% da população mundial. No Grande ABC, segundo informações passadas pelas administrações municipais, ao menos 90 pessoas já se trataram ou estão em acompanhamento atualmente (leia mais abaixo).

Apesar de frequente – existem diversos programas televisivos que mostram casos de acumuladores compulsivos, especialmente nos canais de TV a cabo – existe pouca pesquisa sobre o transtorno. O seu caráter privado, muitas pessoas acumulam apenas dentro de casa, também dificulta a identificação. 

Mas qual o limite entre o colecionismo normal e a acumulação? Integrante do Ambulatório de Medicina e Estilo de Vida do HC (Hospital das Clínicas), a psicóloga Daniela de Oliveira ressalta que o espectro da normalidade é bem tênue quando falamos de qualquer transtorno emocional. “Podemos considerar como patologia quando emoção/atitude gera comportamentos que comprometam a existência da pessoa, de sua relação consigo ou com os que estão em volta, causando sofrimento e prejuízos emocionais, financeiros, sociais, físicos e, muitas vezes, legais”, citou. Neste sentido, explica Daniela, quando a acumulação compulsiva se manifesta, o acúmulo de coisas inúteis começa a atrapalhar a convivência, as coisas ficam em completa desordem e os espaços tomados fazem falta. 

A especialista destaca que além do sofrimento ou prejuízo no funcionamento da vida da pessoa, alguns outros sinais que chamam atenção da acumulação compulsiva são o recolhimento de coisas que a maioria das pessoas joga fora; angústia, ansiedade ou incapacidade ao tentar descartar os objetos; juntar itens em espaços da casa que não foram feitos para isso (como a cozinha, banheiro etc); negar que o acúmulo seja exagerado e mesmo assim não conseguir controlar o impulso.

Especialista em psicologia positiva, Adriana Severine afirmou que não existe perfil específico para as pessoas que são acometidas pelo transtorno, mas que é mais comum em idosos. Pode começar na adolescência, disfarçada como colecionismo, mas vai evoluindo até a pessoa querer guardar qualquer coisa, desde produtos que compra e não usa, embalagens de alimentos, até alimentos estragados. “A pessoa passa a viver em função das coisas, independentemente do valor material”, concluiu.

O transtorno também pode estar relacionado a perda afetiva. “Alguns traços de personalidade cumulativa podem ter existido previamente. Quando evento com alta intensidade emocional acontece, a atitude/padrão emocional aparece como maneira de organização psíquica, uma forma de a pessoa lidar com evento emocional excessivo”, detalhou Daniela. “A acumulação está ligada à ansiedade, que pode ter sido desencadeada por algum trauma. Infelizmente não temos muitos estudos que comprovem essa teoria”, complementou Adriana.

O tratamento para a Síndrome de Diógenes inclui acompanhamentos multidisciplinares, em que os profissionais buscam entender os mecanismos e esquemas que desenvolveram a ansiedade que desencadeou o desejo de guardar objetos. “Não é tratamento rápido, pois a doença foi se instalando ao longo de anos”, afirmou Adriana, complementando que o apoio da família e o início precoce do tratamento são fundamentais para a recuperação.

Separação foi gatilho para distúrbio de diademense
A moradora de Diadema Eliete Leite, 58 anos, ficou sozinha com os cinco filhos em 2004, quando o ex-marido saiu de casa. O homem foi morar com uma vizinha, com quem já tinha traído a mulher. Se ver sozinha, tendo que dar conta de tudo, foi fardo muito grande para a munícipe, que passou, aos poucos, a acumular tudo o que era possível. Sapatos, roupas, móveis, eletrodomésticos, coisas que ganhava, outras que achava, eram guardados para usar em momento oportuno.

O tempo passava, a acumulação aumentava cada vez mais e parecia que nunca era o bastante. Aos poucos, todos os lugares dos pequenos cômodos de  onde vive – atualmente com três filhos, e nos fundos do quintal, mora outra filha e as duas netas – foram sendo tomados por objetos que preenchiam não apenas o vazio físico, mas o vazio existencial que ela sentia.

Uma vizinha insistiu com Eliete que seu comportamento estava fora de controle e a aconselhou a procurar ajuda. “No começo não aceitava, ficava brava. Mas conforme meus filhos foram crescendo, a ficha caiu”, relatou.

No fim do ano passado, a moradora procurou a UBS (Unidade Básica de Saúde) do seu bairro, onde conversou com a assistente social e, posteriormente, foi avaliada por equipe com psicólogo e psiquiatra. “Foi quando me falaram que eu tenho a doença do acúmulo. Desde então, estou em tratamento, continuo com as terapias, para que, aos poucos, eu possa me recuperar”, afirmou.

Eliete está confiante na sua recuperação e aguarda que o DLU (Departamento de Limpeza Urbana) venha buscar o resto das coisas que já começaram a ser removidas. “Agora não aceito mais nenhuma doação. Estou construindo dois cômodos no quintal, para ficar com meus filhos e sair dos cômodos de madeira. Meus filhos me apoiam e eu estou mais consciente, consigo planejar, me preocupar mais com o futuro deles, com coisas normais do dia a dia”, concluiu Eliete.

Cidades da região registram ao menos 90 pessoas que sofrem da síndrome
Quatro das sete cidades do Grande ABC têm registro de ao menos 90 pacientes que já se trataram ou ainda estão em tratamento por serem acumuladores compulsivos. Em Santo André, sempre que um caso é identificado, o atendimento tem envolvimento de diversas secretarias e serviços. São acionadas equipes do Cras (Centros de Referência de Assistência Social) e Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), além de agentes comunitários de saúde. Nos casos em que é identificado que a pessoa tenha alguma patologia de saúde mental, o Caps (Centro de Atenção Psicossocial) é acionado. Denúncias podem ser feitas pelo telefone de atendimento ao munícipe (0800 019 19 44), que atende de segunda a sexta, das 8h às 17h. Não foi divulgado o número de pacientes.

Em São Bernardo, 50 pessoas são acompanhadas pelas UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e Caps, em conjunto com a Secretaria de Assistência Social. A fiscalização para identificar possíveis casos é feita pelo CCZ (Centro de Controle de Zoonoses), que atua de forma preventiva em caso de acúmulos com risco à saúde pública. A equipe de fiscalização conta com a parceria da secretaria de Serviços Urbanos, para remoção de entulho. As denúncias podem ser feitas pelo Atende Bem, pelo aplicativo SBC na Palma da Mão e pela ouvidoria.

São Caetano tratou, nos últimos quatro anos, 15 moradores com o transtorno. Os atendimentos são feitos no Caps Doutor Ruy Penteado, com o apoio do PSF (Programa Saúde da Família), visita do agente comunitário de saúde, reuniões de matriciamento e discussão do caso em rede intersetorial. A administração considera multar o morador como último recurso. Denúncias podem ser feitas na Ouvidoria (4227-7762) ou nas unidades de saúde.

As UBSs de Diadema são responsáveis pelo acompanhamento dos casos  com equipe multiprofissional em conjunto com o DLU (Departamento de Limpeza Urbana). O CCZ eventualmente é acionado quando a situação gera problemas com roedores ou criadouros de mosquitos. A Prefeitura não informou o número de pacientes atendidos. Denúncias podem ser feitas nas unidades de saúde.

Mauá possui dez pessoas com a Síndrome de Diógenes. A rede municipal de saúde conta com estrutura para atender esse tipo de caso e atua concomitantemente à SSU (Secretaria de Serviços Urbanos) para a retirada de materiais das casas. Moradores que identificarem vizinhos acumulando lixo e/ou outros objetos em seus quintais e calçadas podem entrar em contato diretamente com a SSU ou com qualquer unidade saúde.

Em Ribeirão Pires, 15 moradores estão em acompanhamento no Caps II, que realiza o acolhimento e tratamento. A Prefeitura pode ser acionada em caso de denúncia de acúmulo de lixo. Não há registro recente de chamado. Rio Grande da Serra não respondeu até o fechamento desta edição.

Cartunista do Diário lança livro ilustrado sobre o tema
Em 2016, o cartunista do Diário Luiz Carlos Fernandes, 61 anos, e Gilmar Machado Barbosa, 55, que acumula passagens pelo jornal, lançaram em conjunto o livro Efeito Ferrugem. A história, versão ampliada e ilustrada pelos dois, de crônica escrita aquele ano por Fernandes, narra a história de Flagelino, um senhor que passa a acumular parafusos após a morte da mulher, depois que um parafuso cai do caixão onde ela foi enterrada.

Guardando simbolicamente pedacinhos da mulher amada, o personagem vai enchendo a sua casa com parafusos velhos e enferrujados, até que ele mesmo só consegue entrar no imóvel pelo buraco do exaustor. Os meninos da vizinhança passam a juntar parafusos e vender para Flagelino, que gasta todo seu dinheiro comprando os objetos, até que é atropelado, passa por cirurgia e tem parafusos colocados na sua perna.

No hospital, conhece uma enfermeira pela qual se apaixona e consegue curar suas feridas emocionais. Os dois se casam, ela é a mãe do único garoto que não se aproveitou da fragilidade de Flagelino, e o último parafuso encontrado por ele é usado para pendurar um retrato da família na sala.

Com cinco livros publicados, Fernandes afirmou que sempre há o objetivo de passar mensagem positiva. “Quando o cara é acumulador, é sempre para suprir alguma falta, ou tem uma perda, ou foi muito pobre e passa a acumular tudo”, explicou. Em sua cidade natal, Avaré, no Interior de São Paulo, Fernandes realmente conheceu um idoso que andava de bicicleta e juntava parafusos. Mas ele não foi a única inspiração. O pai de Fernandes, Onofre Fernandes Filho, que morreu em 2014, aos 79, também gostava de guardar as coisas, mas não chegava a ser um acumulador compulsivo. “Eu mesmo tenho uma caixa onde guardo os parafusos que acho por aí”, completou.




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