Cultura & Lazer Titulo
Periferia em foco
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
10/04/2006 | 08:17
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Ele saiu do olho do furacão para o olhar da mídia. O rapper Alex Pereira Barbosa, 33 anos, Mensageiro da Verdade ou MV Bill, não usa só rap para propagar sua mensagem. Saiu de Cidade de Deus, conjunto habitacional que virou favela no Rio, para visitar periferias brasileiras com seu empresário musical e parceiro Celso Athayde com uma câmera na mão e uma meta na cabeça: mostrar a condição de crianças de famílias desajustadas usadas por traficantes de drogas como olheiros, soldados armados e serviçais. O resultado foi o documentário Falcão – Meninos do Tráfico, exibido há duas semanas na Globo, que rendeu um livro homônimo e um segundo volume a caminho. Um longa-metragem está previsto para outubro. A trilha sonora composta por Bill durante estas filmagens deve sair em maio no CD O Bagulho É Doido; nos meses seguintes, o DVD do documentário deve estar disponível.

MV Bill peregrina para lançar o livro fazendo bate-papos. Semana passada, visitou a favela Real Park, em São Paulo, e a loja de consumo de luxo Daslu, no dia seguinte. “Pobreza não pode ser resolvida sem auxílio da riqueza. Essas vozes (que criticam sua ida à Daslu) não dizem para onde devo ir. Me dêem um norte ”. Da favela para os holofotes, MV Bill conta nesta entrevista até onde pretende ir com as verdades que quer mostrar.

DIÁRIO – Por que o sr. e Celso Athayde decidiram fazer Falcão e mostrá-lo em rede nacional?

MV BILL – Quando eu fiz o rap Soldado do Morro sobre um jovem Falcão, numa laje, numa comunidade, falando das mazelas do dia-a-dia e seu desejo de uma vida diferente. Pensamos em ilustrar com videoclipe. Explicamos nas comunidades que queríamos fazer um clipe da música que a maioria deles já conheciam. Nos intervalos, na hora em que os fuzis eram encostado na parede, as pistolas eram colocadas no chão, a gente falava de sonho, vida futura, amor, time de futebol...Parecia que a máscara de monstro daqueles caras caía no chão. Dois meses e meio depois do clipe pronto, voltei a essas comunidades para mostrá-lo, e 80% das pessoas que tinham participado ou estavam mortas, ou presas, ou no hospital baleadas, ou desaparecidas. Naquele momento, percebi que a música e o clipe eram importantes, mas insuficientes diante do que seria necessário. Compramos equipamentos digitais, ilha de edição, tudo com dinheiro de shows meus, e da Nega Gizza, minha irmã que canta rap comigo. E começamos a filmar. Começamos a identificar o mesmo problema que antes era só falado do eixo Rio-São Paulo em várias outras capitais. Mas não encontrei diferenças, e sim semelhanças. A diferença era o material bélico, as armas, o tipo de droga traficada, a linguagem, a gíria, Mas o modelo social do jovem era o mesmo. Geralmente negros, pobres, moradores de periferia e com famílias desestruturadas. Esses foram os motivos iniciais. Depois de enveredar por esse caminho e ficar oito anos fazendo isso, foi um vício que a gente não conseguiu parar mais.

DIÁRIO – O que difere esse trabalho de outros?

MV BILL – Esse assunto é discutido ou falado nas vozes de antropólogos ou sociólogos, sem tirar o mérito de suas funções. Mas muitos nunca entraram em uma favela. O que difere esse material é justamente o foco, o olhar. O olhar do documentário é de dentro para dentro. Os jovens falam direto para a câmera, e antes de apertar o rec a gente explicava aonde esse material poderia chegar, o alcance dele e o benefício para as gerações futuras que poderiam visualizar o crime como possibilidade de prosperidade.

DIÁRIO – Até onde Falcão pode chegar? Que tipo de soluções o sr. vislumbra?

MV BILL – As soluções todo mundo sabe quais são. A renda tem de chegar nesses lugares, porque ela está concentrada na mão de minorias. Tem que ter educação e saúde de qualidade para essas pessoas. No Brasil, temos de pagar e caro por isso. Tem de dar oportunidades e reestruturar famílias. No documentário a maioria dos jovens não conhece seus pais. A mãe teve que fazer o serviço de pãe, mãe e pai ao mesmo tempo. E esses jovens já tem filhos e sabem que a linha final da vida e até 17 ou 18 anos no máximo. Sabem que seus filhos podem ser seus futuros sucessores. As meninas com 13, 14 anos, sem educação sexual, já estão com uma criança e pondo outra no mundo. Acho que colocamos a periferia em pauta. Não posso agora ir para baixo do edredom e esperar o que vai acontecer. Estou no olho do furacão e botando a cara.

DIÁRIO – Como o sr. está “botando a cara”?

MV BILL – O documentário passou na TV num domingo e na segunda-feira lançei o livro em Cidade de Deus. Fui a presídios do Rio, fiz palestras, fui ao prefeito, desembargador, Juizado da Infância e Adolescência. Estou indo à Brasília direto, mas não para fazer média com político: é para cobrar, aproveitando a visibilidade que estou tendo. Fui nos Três Poderes, no Lula, e disse para eles que se estão fazendo muito, o documentário mostra que é pouco; se estão fazendo pouco, o documentário mostra que precisam fazer mais; se não estão fazendo nada, precisamos saber porque não. E tem que ser urgente. Essa discussão não deve ficar fadada somente a um tipo de gente. A favela discute isso há muito tempo, só que a favela sozinha não vai se resolver.

DIÁRIO – Por que os srs. cancelaram a exibição de Falcão na Globo em 2003 ?

MV BILL – O combinado era terminar nossa pesquisa, depois lançar. Mas eu queria antecipar o lançamento por conta dos jovens que separamos como fio condutor. Conversamos com mais de 100 pelo Brasil inteiro e escolhemos 17, os de maior sensibilidade, com mais desenvoltura no falar, que a gente acompanhava dentro de casa, na venda de drogas, corria com eles quando a polícia entrava. Num espaço de dois anos, esses jovens foram morrendo. A mãe no momento mais trágico nos ligava pedindo para filmar. Não quis explorar isso, mas temos gravado 16 jovens com plano de vida e o futuro chegando com seus sepultamentos. Eu não consigo ver mais essas imagens. Em 2003 eu decidi exibir e só tinha um moleque vivo. Na semana de exibição a gente recebeu a notícia do falecimento dele. Entrei em depressão e resolvi tirar do ar, achei que não tinha mais sentido. No início de 2005, descobrimos que o 17º não estava morto, estava preso. Fomos até o presídio. Queria saber se ele mantinha vivo o sonho vivo de ser palhaço. Na favela “palhaço” é o cara bobo, vacilão. Eu falei vou te ajudar. Teu sonho manteve você vivo, e vai ser o meu sonho agora. Retomei o projeto todo, voltamos a conversar com a Rede Globo. Para mim, salvar esse jovem numa estrada cheia de manchas de sangue que a gente tem a intenção de humanizar é um ponto de luz lá no finzinho.

DIÁRIO – O sr. acha que sua ação está integrada ao hip hop?

MV BILL – Estou saindo do hip hop com essas questões. Não me sinto representante do hip hop, representante da periferia, nunca falei dessa forma. Não acredito nesse tipo de representação. Acho que essas questões estão além do hip hop. É necessário quebrar paradigmas, tipo “ah! o rap não vai a televisão”. Como assim? Se a gente quer atingir a massa e a televisão é o último elemento das famílias. Se a televisão conversa com as pessoas, por que não usar esse veículo? Eu sou contra a gente se moldar, se corromper para chegar nesse lugar. Sou contra o espaço doado, prefiro o espaço conquistado. Não usá-lo é burrice. Desde que me entendo por gente, a favela se discute, se repensa, só que a pobreza não pode ser resolvida ou amenizada sem o auxílio da riqueza. É necessário dialogar, e o momento é este, com a favela em pauta.

DIÁRIO – O sr. teve medo durante as filmagens?

MV BILL – A todo momento. Esse sentimento andava comigo: medo, preocupação, insegurança, contradição para caralho. O livro é complementar. O documentário é uma coisa, no livro a gente narra outras, os bastidores das negociações, como a gente chegava dentro de uma comunidade, como a gente chegava até um local. Muitas das vezes a gente não tinha nada combinado, e o nosso maior desafio é não saber o que nos esperava e nem sabíamos o que estávamos procurando direito. Então o livro ajuda contar um pouco desses bastidores, de momentos em que a câmara ainda não estava ligada inclusive.

DIÁRIO – No livro, os srs. contam um episódio em que testemunharam um seqüestro. O sr. acha que deveria ter denunciado ou não?

MV BILL – Eu saí daquele apartamento para fazer as filmagens, e o Celso ficou.Essa história não terminou ali. Eu não posso contar, para não tirar as coisas que a gente vai falar no próximo livro. Mas eles sobreviveram, fizemos pressão do nosso jeito. No relato do Celso ele quis fazer uma provocação. No início fui contra porque a hipocrisia do Brasil faria todo mundo se sensibilizar com aquelas três pessoas, que seriam seqüestráveis, e ninguém se atentaria para outras mortes dentro do livro. Apenas o jornal O Dia, do Rio,fomentou a polêmica. Disseram que a gente tinha de ser enquadrado por omissão de socorro. Eles nem sabem que tipo de gente estava amarrada ali. Talvez tenham uma surpresa muito grande no próximo livro.

DIÁRIO – Outra polêmica foi o lançamento do livro na loja Daslu, templo da elite e do luxo. O sr. acha que ali não era lugar para se falar de favela?

MV BILL – Cara, poucas vozes falaram alguma coisa e tal. Só que essas vozes não dizem para onde eu tenho que ir. Na favela, já se discute há muito tempo, mas eu não vejo nada sendo feito. E essa é uma questão que tem que ser discutida por todos. O dinheiro está lá na Daslu, a gente não foi fazer show e sim discutir essa questão que é importante para c.... Muita gente que compra lá, por tabela, financia isso que retratei no documentário e no livro. Uma porrada de gente que estava lá , que são milionários, começaram a se acusar, a se sentir culpados e perguntar de que forma podiam fazer alguma coisa para mudar esse quadro. O dinheiro está lá. Assim como fui lá, quero ir na Ciesp, na Firjan. O primeiro lançamento em São Paulo não foi na Daslu, foi na favela Real Park, depois na Afrobras. Só que a imprensa não foi lá, e mandei release para todo mundo. Já na Daslu estavam bebendo champanhe e comendo caviar dos milionários. Se existem críticas, digam para onde tenho de ir que eu vou. Me dêem um norte.

DIÁRIO – Em Cidade de Deus, você já teve intenção de fazer parte do crime?

MV BILL – Cara, dentro do gueto, sonhar com alguma coisa pode significar pensar no crime também. Por exemplo, no tênis. Se não tenho um pai que possa me dar essa p..., então é o crime que vai me dar. Só que existe uma diferença entre pensar e agir. E eu tive uma. Aos 14 anos, meus pais se separaram. Me transformei no responsável da casa, e ao mesmo tempo conheci o rap e os livros que abriram o mundo para mim. Foram os livros que mostraram que além de letras legais, poderia me transformar em uma coisa diferente no ambiente em que eu vivia. Hoje, quando eu lanço um livro, que foi o início da minha consciência, percebo que talvez seja o primeiro livro de muito moleque na periferia.

DIÁRIO – Seu apelido é Mensageiro da Verdade. O que é verdade?

MV BILL – Não sou mensageiro da verdade. Quando eu era moleque, pregava ensinamentos que aprendi com o hip hop na comunidade. Fiquei conhecido na Cidade de Deus como o “garoto da mensagem”, “o garoto da verdade”. Na época, tinha 14 anos, e ficou Mensageiro da Verdade. Fiquei meio prepotente, mas eu era molecão. Hoje o MV está mais para a minha verdade. Mas o que é a verdade? Talvez seja uma grande mentira.




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