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Dercy Gonçalves, a mãe sem papas na língua
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
08/05/2004 | 18:48
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Quando Dercy Gonçalves nasceu, em 1907, o cinema falado era ficção científica, Bertolt Brecht (1898-1956) rodava pião em alguma rua da Alemanha e Samuel Beckett (1906-1989) ainda sujava os cueiros. Prestes a completar 97 anos de idade (em junho), a atriz conta oito décadas de carreira embebida de 23 filmes sonorizados e mais de 50 peças teatrais. E foi a arte da representação que a sacou de Santa Maria Madalena (cidade do interior fluminense, com 10.476 habitantes), aos 17 anos, e que está impressa em cada um dos mil itens de seu acervo pessoal presentes ao bazar realizado sexta e sábado em Santo André.

Dercy acompanhou pessoalmente as vendas em um salão de cabeleireiros na rua das Monções. Durante a visita, a nonagenária artista falou brevemente ao Diário, e corroborou a personalidade escrachada, mas sempre conectada ao Brasil.

Rainha dos bipes de TV e das reticências de jornal que camuflam os palavrões que ela emite com a potência de uma AR-15, Dercy falou à reportagem na quinta-feira sobre maternidade (ela é mãe de Decimar, 69 anos), sobre bingos, sobre o desempenho de Lula no Planalto e sobre a possível volta aos palcos no Rio. Antes, advertiu, ao telefone: “olha, cara! Fala alto senão eu não escuto. Estou ótima e tudo, mas já tenho 97 anos”.

DIÁRIO – Por que se desfazer das coisas de seu acervo pessoal, Dercy?
DERCY GONÇALVES – Porque eu tenho milhões de peças de roupa e essas coisas tavam entupindo minha casa. Não é por necessidade, não! Moro no que é meu, sou independente.

DIÁRIO – Você está morando no Rio, não?
DERCY – Sempre morei no Rio. Já tive apartamento em São Paulo. Eu sou da época em que São Paulo acabava na avenida São João e olhe lá. Agora, São Paulo cresceu, é a “capital” do Brasil. Eu adoro São Paulo.

DIÁRIO – Você é freqüentadora confessa de bingos. Sofreu muito quando o Governo Federal determinou seu fechamento (baseado na Medida Provisória 168, de fevereiro, invalidada pelo Senado na quarta-feira passada)?
DERCY – Você é bingueiro para me fazer uma pergunta dessas, p...? Hoje (quinta-feira) já me chamaram para ir ao bingo. Lamentei não poder estar lá, porque é onde mato meu tempo. Uma mulher como eu, com todo o meu raciocínio, não pode ficar parada. Para mim foi uma felicidade que eles (os bingos) reabriram. Me distraio, me arrumo toda para ir lá. Sou vaidosa, adoro quando me falam: “Nossa, como você tá linda!”.

DIÁRIO – Domingo (hoje) será o Dia das Mães. Como é a Dercy mãe?
DERCY – Mãe tem cotação no Brasil, cara! Esse negócio (Dia das Mães) é só comércio. O filho não é propriedade e mãe é só um aparelho para gerar gente. Mas eu gosto de ser mãe.

DIÁRIO – Já que estamos falando sobre tudo, o que você acha do Lula (presidente Luiz Inácio Lula da Silva)?
DERCY – Eu gosto dele. É um homem honesto, mas ingênuo. A corriola (quadrilha) vem de longe, a culpa não é dele. Ele já encontrou sapato para engraxar, acho que vai conseguir administrar um país como o nosso, milionário pra burro e que tá devendo o que não tem. No Brasil é assim: nós vivemos mais de amor do que de comida.

DIÁRIO – Dercy, você está preparando um retorno aos palcos?
DERCY – P... que pariu! Não tô ouvindo p... nenhuma...

DIÁRIO – (A pergunta é repetida, num volume mais alto).
DERCY – Ah, agora tô conseguindo te ouvir. Fui convidada pelo pessoal do Canecão (casa de shows no Rio) para fazer um espetáculo lá. Talvez a estréia aconteça no dia 25 (deste mês). Eu arranjei uma subvenção na Secretaria de Cultura (do Rio). Eu, com 97 anos, consegui um apoio para fazer cultura. Tô muito feliz. Eu vou fazer o show uma vez por semana. Antigamente eu trabalhava “20 dias por semana”. Tá tudo falido neste país.

DIÁRIO – O que está exatamente falido, Dercy?
DERCY – O país, p...! Hoje em dia tudo é mais difícil do que na minha mocidade. Antes, o povão sempre acompanhava teatro. É o povão que sustenta o Brasil e ele é sacaneado, porque o dinheiro dos ricos, eles botam na Suíça. Eu sou 100% povão. E ninguém facilita. Tem toda essa tecnologia, o homem foi pra Lua, mas para as formiguinhas não tem comida. Hoje não dá para viver, não. Nunca vi tantos juros na minha vida. Hoje, você paga juros até para mijar.

DIÁRIO – Você tem ido ao teatro ultimamente?
DERCY – Ai, meu Deus! P..., meu filho. Fala mais alto.

DIÁRIO – (A pergunta é repetida).
DERCY – De vez em quando. Fui ver a Fernanda Torres (na peça A Casa dos Budas Ditosos). É um espetáculo forte, verdadeiro. Mesmo porque se for mesmice eu não vejo. Mas a peça da Fernanda, eu fui ver por curiosidade, não acreditava nela. Mas achei ela espetacular, a coragem que ela teve para fazer aquilo... Precisa ser muito “macho”.

DIÁRIO – Você acredita que tem alguma sucessora no teatro ou na TV?
DERCY – Muita gente me imita. A Fernanda, não. Ela tem o mesmo carisma e a mesma verdade que eu tenho. Porque falar palavrão não é vantagem, todo mundo fala. Não basta ficar falando baixaria. Eu não represento, eu falo a verdade.

DIÁRIO – Você acha que o humor que se faz hoje em dia é realmente engraçado?
DERCY – Levei muitos anos para fazer graça. Falava p... que pariu e todo mundo “ohhhh!”. Mas não é a mulher que pare, que dá à luz todo mundo? Falava p... e todo mundo “ohhhh!”. Você foi feito de p..., como é que vai negar de onde veio? Minha escola não tem cópia. Eu sou do tempo em que (teatro de) revista era considerado pornochanchada. Teatro brasileiro, nessa época (décadas de 30 e 40), era marginal. Cultura era só o que vinha da Itália, de Portugal, da França. Eu fiz parte do verdadeiro teatro popular deste país. Hoje, tá tudo liberado, esculhambado, libidinoso. Eu sou uma mulher cheia de preconceitos, cara! Quando eu sou a Dercy, eu represento a educação e a cultura deste país. Em casa, eu sou a Dolores (nome real de Dercy), só tenho que pensar em respeitar minha casa, minha família. Existe uma diferença entre amor e respeito. Amar é isso que eu tô fazendo com você: não ouço p... nenhuma do que você fala, e continuo respondendo o que eu acho que você tá perguntando.




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