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Milton Andrade: ‘Ninguém se sente responsável pela cultura’
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
08/05/2005 | 11:41
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Some-se a confusão freqüente feita pelo Poder Público entre evento e política cultural com a rivalidade entre os municípios do Grande ABC e a falta de continuidade de projetos em geral e o resultado é prejuízo para todos, especialmente para a cultura. Na opinião do ator e escritor Milton Andrade, integrante do Conselho Editorial do Diário, a competição existente, mais entre uns e menos entre outros municípios da região, impede a criação de uma “cultura regional”. “Nossa cultura padece do pior mal que a poderia atingir: o alheamento. Ninguém se sente responsável por ela”.

Andrade atuou recentemente na minissérie Mad Maria, da Rede Globo, e está preparando projeto para montar o espetáculo teatral Dom Quixote. Formado em Direito pela PUC-Campinas em 1959, é ator desde 1957 e escritor. Criou a Fundação das Artes de São Caetano, em 1968, dirigindo-a durante 16 anos, e assessorou a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo de 1975 a 1986. Ele comenta também o quanto um artista sofre em sua “tarefa hercúlea” de procurar apoio para projeto cultural pelas leis de incentivo existentes, chamadas por ele de um “engodo” que alivia o Poder Público de suas responsabilidades repassando-as ao empresariado.

DIÁRIO: Há gargalos que impedem o desenvolvimento econômico do país (má conservação das estradas, falta de modernização dos portos e altos impostos). Cultura também tem seus gargalos? Quais seriam?

MILTON ANDRADE: Não posso imaginar a que campo de atuação está se dirigindo o poder central sediado em Brasília, já que todos os setores da administração pública estão estagnados ou caminhando às cegas, sem nenhum projeto coerente. Daí, os tais gargalos. No que diz respeito à cultura, então, a situação é realmente caótica: há muito o Poder Público abriu mão das suas obrigações constitucionais sobre o assunto. Durante a ditadura militar, a cultura foi o alvo predileto do poder: artistas de todos os setores foram perseguidos, exilados e amordaçados em suas manifestações criativas. Alguns, até, foram mortos nos porões da ditadura. A cultura foi separada da educação nos curriculuns escolares e cerceada por todos os lados por meio de severa censura. A abertura democrática apenas abrandaria o castigo a que foi submetida a cultura: desapareceu a censura política e instalou-se a censura econômica com a instituição das leis de incentivo, que permitiram ao Poder Público lavar as mãos e ignorar as manifestações culturais, que, quando acontecem, são pagas através dos incentivos fiscais, fazendo concorrência aos artistas.

DIÁRIO: Política cultural é uma questão de Estado, de municípios ou de regiões?

ANDRADE: A cultura é, foi e será, sempre, uma obrigação do Poder Público para com todos os cidadãos. E quando digo Poder Público, estou me referindo à União, aos Estados propriamente chamados e aos municípios. Isolados ou agrupados em regiões. Essa obrigação está expressa na nossa Constituição, mas a nossa cultura padece do pior mal que a poderia atingir: o alheamento. Ninguém se sente responsável por ela.

DIÁRIO: O modelo de patrocínio cultural por parte de empresas privadas e estatais com base nas leis de incentivo é o ideal para o país?

ANDRADE: O sistema de patrocínio cultural estabelecido pelas chamadas leis de incentivo é um engodo. Serviu apenas para que o Poder Público se sentisse aliviado de suas responsabilidades, repassando-as ao empresariado. As instituições, por sua vez, ignorando o seu papel social, fizeram dele um instrumento bem pouco digno. Muitas delas criaram projetos próprios que vivem da parcela de imposto que devia ser recolhida aos cofres públicos, se beneficiando institucionalmente disso. Conseguir patrocínio pelas leis de incentivo para um projeto cultural é uma tarefa hercúlea. Raramente um projeto que contenha nomes desconhecidos ou que tenha pequena visibilidade por parte da mídia é contemplado. Em geral recebem ajuda projetos de grande porte e que, antecipadamente, gozem de prestígio público. Ora, estes projetos costumam ser auto-financiados e não necessitam da cobertura de ninguém, mesmo porque, raramente são culturais. Pior que isso, os órgãos públicos também recorrem aos incentivos quando decidem promover qualquer projeto.

DIÁRIO: Cultura e consumo de massa devem existir separados ou a convivência é necessária?

ANDRADE: A cultura é, ao mesmo tempo, causa e efeito de fenômenos sociais. Se estamos vivendo numa sociedade de consumo, a cultura tenderá a espelhá-la, sublinhando-a, contrariando-a ou propondo-lhe novos caminhos. Tudo o que interessa ao homem de certa época e determinado local é objeto da cultura, portanto a convivência se faz necessária. Ainda que para ser criticada. É evidente que a luta é muito dura e a mídia muito raramente se coloca do lado da cultura.

DIÁRIO: Cultura nacional e popular seriam dois termos diferentes ou interligados?

ANDRADE: Cultura é reflexão sobre a maneira de viver do homem em determinados lugar e tempo. É análise do passado, tentativa de explicação do presente e proposta para o futuro. Quando se fala em cultura nacional se está circunscrevendo a cultura a determinada região geográfica. Quando se fala em cultura erudita ou popular está se separando o objeto da análise de acordo com a natureza da manifestação cultural: se trata de mero grau de erudição.

DIÁRIO: O que você entende pelo termo “cultura regional” quando aplicado ao Grande ABC?

ANDRADE: De vez em quando ouço falar em “cultura regional do ABC”. Como os municípios que compõem a nossa região têm mais ou menos as mesmas características em muitos aspectos, acho que se poderia, mesmo, falar em identidade cultural e, quem sabe, até, propor trabalho conjunto, de projetos coletivos, ainda que fosse apenas por medida de economia de custos ou de meios.

DIÁRIO: Na sua opinião, por que a cultura não é tratada como uma questão regional no âmbito das políticas públicas no Grande ABC? Quais seriam os empecilhos?

ANDRADE: Lamentavelmente percebe-se haver entre os nossos municípios – entre uns mais, entre outros, menos – uma certa rivalidade, uma competição, que só resulta em prejuízo para todos. Some-se a isso a existência de partidos políticos diferentes em cada cidade, a falta de continuidade nos projetos em geral, e, em especial, do equivocado conceito que os poderes públicos têm das suas obrigações para com a cultura, confundindo eventos com política cultural.

DIÁRIO: Você acredita que o Grande ABC tornou-se exportador de mão-de-obra, isto é, as escolas livres de arte e fundações culturais formam artistas para abastecer os grandes centros produtores?

ANDRADE: Sim, o Grande ABC é um exportador de músicos, de atores, de bailarinos, de artistas plásticos, etc. Somos dotados de algumas escolas de arte bastante eficientes naquilo a que se propõem. Em compensação, até agora, com raras exceções, ninguém se preocupou em criar condições para a fixação dos seus alunos na região. A situação é curiosa: nossas prefeituras investem na formação cara de mão-de-obra especializada e, depois, simplesmente a despreza. Então, profissionais em sua arte, os ex-alunos tomam o caminho das grandes capitais, que os acolhem. Note, a Fundação das Artes de São Caetano existe há 37 anos e não sei de conjunto musical ou de grupo de teatro ou de dança profissional no município. A Orquestra Sinfônica de Santo André sobrevive semi-amadoristicamente, pagando aos seus jovens músicos, há cerca de dez anos, uma pequena bolsa de estudos, enquanto uma lei municipal, em vigor, institui no município uma Orquestra Sinfônica e cria cargos até agora vagos. Não lhe parece que alguma coisa anda errada?

DIÁRIO: O que você teria a dizer sobre a viabilidade da criação de um pólo de produção cultural – ou audiovisual, ou teatral, ou literário etc – no Grande ABC?

ANDRADE: Acredito que um dos entraves que a administração pública encontra para a solução desses problemas que estou expondo seja de ordem econômica, mas a maior dificuldade é a falta de vontade política. Por essa razão, acho prematura a solução regional. A desunião entre os políticos dos vários municípios acabaria conduzindo tal pólo de produção cultural a um balaio de gatos, sujeito a servir mal e descontinuamente. Ainda estamos verdes para o trabalho regional, se bem que em determinado momento do passado houve uma experiência bastante interessante. Então, era secretário de Educação e Cultura em São Bernardo o ex-deputado e atual presidente do Memorial da América Latina, Fernando Leça; em Santo André era secretário o professor Miller de Paiva; em Diadema, o professor Benedito Chaim; em Ribeirão Pires o ex- deputado e agora prefeito, Clóvis Volpi. Conseguimos unir os nossos interesses em torno da cultura – nessa época eu estava à frente da Fundação das Artes de São Caetano – e, sem qualquer formalidade, nos reuníamos mensalmente e planejávamos a vida cultural dos nossos municípios. O resultado foi tão bom que em breve tínhamos à volta da nossa mesa todo o Grande ABC, a Baixada Santista e logo mais representantes de Sorocaba e Campinas. Havia sido criada uma união por meio do interesse comum e cultural. Mas esse exemplo é, sem sombra de dúvidas, uma exceção.

DIÁRIO: Como deveria ser uma política para cultura, do ponto de vista do acesso da sociedade às várias formas de expressão?

ANDRADE: Assim como a formação cultural dos artistas, a criação de um público é tarefa delicada e muito demorada. Carece de continuidade e de permanente qualidade. Cito novamente como exemplo o trabalho da Sinfônica de Santo André: ela tem um público cativo. Basta anunciar um concerto e a sala fica lotada, invariavelmente. A proximidade de São Paulo afeta, claro, a formação de um público na região, mas a nossa população é grande e sequiosa de bons espetáculos. O que é necessário é que eles aconteçam, o que nem sempre ocorre. E com regularidade de local e de horário. Em geral os nossos teatros são subutilizados. Principalmente porque não são atendidos por pessoal técnico nem são aparelhados com recursos mínimos de iluminação e de som impossibilitando bons resultados artísticos, mas o seu uso é cobrado, e muito bem. Fique claro que não acho que o poder público deva se transformar num promotor de eventos, o que levaria a um direcionamento da cultura muito perigoso em mãos mal-intencionadas, mas é indispensável que ofereça condições para que eles ocorram.



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