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'Kasulo' é espetáculo de dança envolvente
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
18/05/2003 | 19:10
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Augusto dos Anjos, em seu Poema Negro, trata a morte como uma “carnívora assanhada”. Sandro Borelli e sua companhia FAR-15 radicalizam o extremo aparente no novíssimo Kasulo, espetáculo que estreou oficial e nacionalmente na noite de sábado, no Teatro Municipal de Santo André. Borelli e mais cinco bailarinos expõem no palco a dieta dessa morte carnívora, antropófaga sobretudo.

Ainda não há previsão de nova encenação de Kasulo antes de junho, quando está programado o início da temporada no Centro Cultural São Paulo. Foi limitada a cerca de 60 espectadores a exibição de sábado, uma vez que a FAR-15 dispensa as acomodações da platéia e distribui o público sobre o palco, em cadeiras que ladeiam o tablado no qual o espetáculo é encenado.

Essa proximidade de bailarinos e público é recurso para que o espectador abstraia um simples entendimento visual e auditivo. É necessário que a ele sejam transmitidas angústia e opressão sofridas pelo homem. O tato da platéia é instigado a cada toque, passo, salto e rastejo dos bailarinos.

Mesmo a respiração e o pescoço são convidados à disciplina de movimentos opressores da coreografia. Que opressão aqui não se traduza como intimidação. Funciona como uma alternativa para que o espectador perceba-se como elemento ativo, nunca passivo, em Kasulo. Bailarinos inspiram sons agonizantes, com o vidrado testemunho do diafragma dos espectadores; desfilam também, quando em posições coadjuvantes, como se fossem tapumes humanos, barram a encenação dos protagonistas e confrontam o comodismo de quem assiste. Está posta a tarefa para o público: fintar essas barreiras em seu campo de visão, para que sua participação seja efetivada no espetáculo.

Os homens-tapume e as mulheres-tapume movem-se em espiral, sincronizam o fim da vida representada em seu miolo. Solos e duos comunicam-se no meio dessa ciranda, interpretados por Borelli, Roberto Alencar, Marcos Suchara, Renata Aspesi, Sônia Soares e Veridiana Zurita. Seis intérpretes de uma morte cansada embora incansável.

Convulsões, contorcionismos e explosões musculares se apresentam como resistência ao início do fim da vida. E, ao início do fim da agonia, reservam-se rastejos e expressões faciais congeladas. Dependência também se manifesta como uma espécie de morte, no indivíduo tolhido pela onipresença do tirano – no duo em que o bailarino não permite que a parceira se locomova sem que a custódia de suas mãos ou de seu corpo; ou naquele em que o casal desenha tranças no palco sem descolar as bocas. Cautela das mais tirânicas.

Kasulo representa a morte não como descanso ou repouso; Kasulo a tem como interrupção da existência intelectual e espiritual do homem. Não parece acaso, então, que a peça tome como massa bruta três autores – Augusto dos Anjos (1884-1914), Ismael Nery (1900-1934) e Franz Kafka (1883-1924) – cujas mortes prematuras sublinham a urgência de suas obras.




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