"Se não for redundância, é o lado B do lado B", brinca Zélia Duncan sobre as canções de Itamar Assumpção (1949-2003) que ela acaba de tirar do baú em "Tudo Esclarecido" (Warner Music, preço médio R$ 30).

Zélia, hoje, que se sente uma das meninas de Itamar, sempre acalentou esse sonho. Antes mesmo de começar a carreira, pensava em batalhar uma vaga como vocalista da Isca de Polícia, banda com a qual ele movimentou a música paulistana a partir dos anos 1980.

"Tive um choque quando ouvi Itamar e a sua turma. Ele foi o que deles todos me deu vontade de cantar. O tipo de letra, ambiência, aquilo era estranho e me atraía ao mesmo tempo", diz ela, que sempre se sentiu mais inteligente e cheia de desejo de não desperdiçar as chances que tem de subir ao palco por conta dele.

"Ele usa palavras comuns, das que a gente usa o tempo inteiro, mas não de um jeito normal. Tudo é relevante, diz alguma coisa. Até quando ele está sendo leve, não é superficial."

Embora tenha passado longe dos clássicos nas 13 faixas do disco, Zélia pegou material fino, cheio de inéditas, e fez dele um clássico seu. Tornou ‘lado A' a obra do maldito Itamar, que desde sempre carrega essa pecha pelo aspecto marginal de sua música, que não se submete a nada que não seja o crivo do próprio.

"Tudo Esclarecido", para Zélia, quer dizer a chance de desfazer um pouco essa imagem. "Ele tem o preto raiz, todo um lado mais sombrio. E a gente está querendo botar o Itamar para tomar sol. O rótulo de maldito é cruel e não dá conta da obra dele toda. Por mais que Itamar tenha uma obra experimental, mais cabeçuda, ele tem outro lado que é palatável e merece ser visto."

A produção da obra, assinada por Kassin, resgatou tudo que Zélia tinha guardado em si. "O que tem no disco é a minha relação com o Itamar potencializada. O Kassin conseguiu perceber esse elo, o quanto esse universo está dentro de mim."

Além do ar vintage que refresca os arranjos, a cantora acha que ter gravado no Rio fez com que a coisa toda fluísse mais espontaneamente. "Foi legal gravar com músicos que não conheciam muito ele, não teve peso. Eles adoraram e deram o melhor de si de um jeito que não enquadrava a música do Itamar como se fosse um legado, um ícone."

O resultado a surpreendeu. Conseguiram todos fazer um disco pop com uma gama de sons diferentes. Balada, reggae, forró e samba também fazem parte da receita. "Sem querer tirar os pesos e consistências, que sem isso o Itamar não existe." Ney Matogrosso e Martinho da Vila também participam do projeto.

ÁGUA E VINHO
Os dois se conheceram depois que Zélia, estreante "na novela das oito, dentro de uma grande gravadora", começou a dizer que Itamar era a sua influência. "Eu era o padrão e ele era a falta de padrão. Eu dizia que ele era a minha influência e ninguém entendia nada. As pessoas estavam com expectativa de que eu repetisse a trajetória do primeiro disco", conta ela, que começou a surpreender, buscar outros caminhos, logo em seguida.

Eis que Itamar Assumpção um dia liga e lhe convida para cantar junto em um show. "A gente era diferente e se gostava muito, como água e vinho. Ou escudo e arma, como a filha dele, Serena, fala."

"No próximo disco gravei uma música dele pela primeira vez. E quem fez o arranjo foi o Lenine, que não era ainda muito conhecido. Eu estava procurando coisas que pudessem ser diferentes."

Entre tudo que o compositor legou à Zélia, há uma homenagem explícita que virou uma das faixas do disco: "Zélia Mãe Joana". Nela, Itamar brinca em versos como: "Sou Zélia moderna, não Zélia banana / te enforco num cadafalso / de dama viro tirana / sou Zélia nervos de aço / mas odeio doidivanas."