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Escritor fala sobre o plágio em novo livro
Por Do Diário do Grande ABC
22/04/2000 | 13:23
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Nao se poderia esperar outra coisa senao um texto surpreendente de Pascal Bruckner, escritor pouco conhecido entre nós. E isso apesar de já ter um romance, "Lua de Fel", adaptado para o cinema por Roman Polanski. Há alguns meses, a Rocco lançou outro livro do autor, "Ladroes de Beleza" (R$ 28; 238 págs., traduçao de Emerson Xavier), que passou praticamente despercebido. É outra obra curiosa.

Fala da ascensao social pelo caminho do plágio. Esse é o ponto de partida do alpinista social Benjamin, anti-herói de "Ladroes de Beleza". A história toda pode ser lida como uma alegoria para o fim de milênio. Segundo o autor, a realidade contemporânea é feita de coisas que nao podem ser suportadas. Primeiro, a originalidade; segundo, a beleza física. Ambos, o novo e o belo, devem ser considerados transgressivos numa sociedade construída sobre a repetiçao e a norma.

A história de Bruckner é bastante mais complexa do que parece à primeira vista. Deixando-a em linha reta (no livro há saltos no tempo, alternância de vozes narrativas, etc.) seria algo assim: Benjamin é um pobre-diabo que se sente envelhecido desde jovem. Tem 38 anos de idade cronológica e aparência de 50. Provinciano, habituado ao lado escuro da vida. Muda-se para Paris, onde ganha um dinheirinho levando caes para passear. Até que um dia, um cliente, dono de um desses caes, o descobre lendo um livro. Pensa que Benjamin é um homem culto e pede-lhe que escreva uma carta. Ei-lo transformado em escritor de cartas alheias para gente pouco habilidosa com as palavras, uma espécie à francesa de Dora, a personagem de Fernanda Montenegro em Central do Brasil.

Mas o romance de Bruckner segue em outro sentido. Pelo contato com os livros e as palavras Benjamin acaba vendo a luz. Ele próprio nao é um criador. Nao passa de uma fonte seca. Mas sempre há os grandes autores, cada vez mais desconhecidos pelo público e confinados a bibliotecas e fichários de especialistas. Ele reconhece o valor desses livros esquecidos e chama-os de túmulos de signos - "Se tudo já foi escrito, para que buscar novas idéias?". Com essa constataçao, o escritor frustrado torna-se um pirata de êxito. Um bricoleur literário, com uma regra de conduta inflexível: surrupiar apenas de autores mortos - "pois os vivos sao muito suscetíveis".

Assim, de um pot-pourri infernal, com uma frase pinçada de um autor e enlaçada a outra de um segundo, Mérimée, Zola, Dickens, Diderot, todos no mesmo caldo, Benjamin parteja seu "As Lágrimas de Sata", sucesso de público e crítica. Um dos seus intérpretes sem querer acerta na mosca ao dizer que Benjamin havia recapitulado, em sua "escrita de ressonância", toda a história literária do século.

Há um desdobramento inesperado na história, quando o impostor se vê chantageado por um mulher jovem e muito bela, Hélene. Ela descobre a fraude, mas, estranhamente, apega-se ao escritor. Outra virada quando o casal encalha na neve alpina e conhece um bando de malucos, os tais "ladroes de beleza" do título, dispostos a eliminar da face da Terra as criaturas destoantes do padrao normal da aparência humana, isto é, os belos.

Essa segunda metade do livro nao interessa tanto, mesmo porque é por aí que a prosa de Bruckner se perde e acaba por cair na mesma armadilha que pretende denunciar. Isto é, na arte da repetiçao acrítica, cuja paródia contemporânea é justificada com o nome imponente de pós-modernismo.

O interessante nao é tanto o livro de Bruckner em si, mas a forma como constrói o personagem. Benjamin nao é como os grandes falsários, aqueles homenageados por Orson Welles, que querem aproximar-se ao original a ponto de serem confundidos com ele. Borges - sempre ele - entendeu por antecipaçao essa paixao moderna pela cópia. Em Pierre Ménard, Autor do Quixote, imagina alguém tao obcecado por criar algo semelhante à obra-prima de Cervantes que nao tem outra maneira de começar o próprio romance senao com as palavras "Em algum lugar da Mancha, cujo nome quero lembrar, etc., etc." Ou seja, com as palavras exatas do original.

Furto - A relaçao entre original e cópia, o debate moderno sobre a autoria, estao extraordinariamente bem expressos em "Ladroes de Beleza" - e, provavelmente, à revelia de Bruckner. De fato, como nao falar em furto, se a estrutura de frases inteiras, o modo de formulá-las, o caráter repetitivo das situaçoes, nao pára de remeter ao protótipo do libertino, Sade em pessoa? A relaçao submissa de Benjamin em relaçao a Hélne, por sua vez, o caráter contratual que rege o par, nao deixa de lembrar aquele que é considerado o oposto simétrico de Sade - Lepold Sacher-Masoch. É uma maneira de pilhar o discurso libertino do Século das Luzes.

Mas Bruckner vai além. Cita a si mesmo, sem declarar a fonte, porque toda a estrutura narrativa de "Ladroes de Beleza" é calcada sobre a de sua obra mais famosa, Lua de Fel. Numa, como na outra, trata-se da relaçao confessional entre um personagem e outro que conduz à trama banhada em perversidade. Quem conta a história domina o outro, como aconteceria numa situaçao psicanalítica também pervertida. Ok, é a sua obsessao como escritor, e ele tem todo o direito de expressá-la. Nao era Nélson Rodrigues quem dizia que as idéias fixas é que dao estabilidade a um criador? Pintores nao repetem o mesmo desenho ad infinitum, até considerarem o tema esgotado?

O problema real é Bruckner ter trabalhado o mesmo tema, mas de maneira inferior a uma obra dele mesmo, datada de anos atrás. Imitando-se, regride. E nao se pode dizer que a sofrível traduçao em português o ajude muito.




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