Cultura & Lazer Titulo Flip
Alta exposição
Por Melina Dias
Do Diário do Grande ABC
05/07/2009 | 07:07
Compartilhar notícia


Existe nas artes visuais contemporâneas a vertente body art, denominação usada, grosso modo, para produção de artistas que utilizam o corpo como suporte. Pode-se dizer que esse conceito transposto para literatura tem representação em duas autoras francesas, presenças confirmadas na 7ª Festa Literária de Paraty, para lançamento de seus últimos livros.

Catherine Millet, 61 anos, e Sophie Calle, 56, radicalizam na exposição de suas vidas privadas e o que fazem com seus corpos e mentes. O resultado é poético, mas também incômodo, como a boa arte deve ser.

Catherine é fundadora e diretora da Art Press, influente revista de arte francesa, autora de livros e especializada na obra do pintor espanhol Salvador Dalí. Virou best-seller com A Vida Sexual de Catherine M. (2001) no qual narra suas intensas experiências sexuais.

Agora ela provoca com Jour de Souffrance, que no Brasil ganhou o título de A Outra Vida de Catherine M. (Ed. Agir, 200 págs., R$ 39,90). Nesta sequência surpreende o leitor com uma aparente contradição: a adúltera contumaz surta ao descobrir que o marido tem outra. Ela vive com esse homem há 30 anos mas, obcecada, passa a espionar sua correspondência, seus arquivos de computador e, o pior, bloqueia o desejo sexual pelo companheiro com pensamentos nos quais visualiza suas "traições". Sua escrita elegante descreve o turbilhão de emoções. Ansiedade, angústia, crise de autoestima, egoísmo, possessão. Nada mais verdadeiro e humano. Em tempo, Catherine realiza palestra na terça, às 20h, no Sesc Vila mariana com entrada franca.

Igualmente verdadeira e humana é Sophie Calle. Logo que sua vinda ao Brasil foi anunciada, muito se falou sobre sua última obra multimídia. Ao receber por e-mail a dispensa do amante, Sophie reverberou a mensagem. Passou-a para uma centena de mulheres e gravou em vídeo suas "respostas". A carta terminava com a frase "cuide-se bem", nome da exposição que será aberta no Sesc Pompéia, no próximo dia 11. Nessa data, às 15h, Sophie fala com o público sobre o processo de criação da mostra.

O livro que Sophie aproveita para lançar no Brasil é Histórias Reais (Ed. Agir, 88 págs., R$ 34,90), uma combinação de breves relatos e fotografias. São reminiscências da infância à vida adulta que, também numa primeira leitura, parecem amalucadas.

A cada nova historinha, Sophie tempera um caldo de emoções peculiar. Ora arranca um sorriso, ora emociona pelo singelo. Surpreende ao gerenciar situações de modo genial. Como ao atender o pedido de um leitor da Califórnia que, arrasado após levar um fora, propôs passar pelo período de convalescença na sua cama em Paris. Sophie não teve dúvidas: mandou-lhe pelo correio o móvel desmontado com lençóis em que havia dormido. Tempos depois a cama foi devolvida pelo homem restabelecido.

Trechos

O Nariz
Eu tinha quatorze anos e meus avós queriam corrigir algumas das minhas imperfeições. Iriam refazer meu nariz, esconder a cicatriz da minha perna esquerda com um pedaço de pele retirado das nádegas e, ainda, corrigir minhas orelhas de abano. Eu não estava convencida, mas me tranquilizaram: eu poderia desistir até o último instante. Foi marcada uma consulta com o doutor F. , famoso cirurgião plástico. Foi ele que acabou com as minhas dúvidas. Dois dias antes da operação, ele se suicidou.
(Extraído de Histórias Reais, de Sophie Calle, pág. 11)

Uma das vantagens do sonho é a perfeita impunidade da qual nos beneficiamos, quaisquer que sejam as atrocidades que cometamos ou indecência que demonstremos. Eu estava tão mergulhada na pesada atmosfera da minha obsessão que não vi, imediatamente, a que ponto Jacques estava magoado com a minha intromissão nos seus papéis íntimos e com a minha hermenêutica aleatória sobre seus livros. Era como se eu estivesse vasculhando seu inconsciente. Foi preciso que ele se manifestasse, em uma das novas cartas que me enviou, sobre os "estragos" causados pela "minha intrusão naquilo que era mais precioso para ele (além da nossa vida em comum), seu trabalho de escrita e as fantasias das quais ele se servia"; ele teve que escrever com todas as letras a que ponto estava "vazio e abatido", para que eu começasse a tomar consciência disso. Antes, eu nunca duvidara de que aquele que tudo via em mim não me explicasse tudo e não perdoasse tudo.
(Extraído de A Outra Vida de Catherine M., págs. 119 e 120)




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;