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A travessia de Guimarães Rosa
Por Raymundo de Oliveira
Do Diário do Grande ABC
18/05/2002 | 16:03
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“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”. Há exatos 50 anos, o escritor mineiro João Guimarães Rosa saía da Fazenda da Sirga, no município de Três Marias (MG), para atravessar, no lombo de uma mula, 40 léguas (240 quilômetros) e passar dez dias em companhia de vaqueiros que conduziriam uma boiada até Araçaí, distrito de Sete Lagoas. Na viagem que teve início às 10h30 do dia 19 de maio de 1952, o autor de Sagarana queria reforçar o contato com pessoas, locais, linguagem, cultura e seres do cerrado mineiro para um livro em andamento.

   Dois anos depois, ele havia terminado o único romance que escreveu e concluído a epopéia pela língua portuguesa que colocou Grande Sertão: Veredas entre as maiores obras da literatura universal contemporânea. Há duas semanas, Grande Sertão: Veredas foi o único livro brasileiro a constar em uma lista publicada pelo jornal inglês The Guardian sobre as 100 melhores obras do século XX. A relação foi feita por 100 escritores convidados a indicar os melhores livros do século passado.

   Na saga do ex-jagunço Riobaldo, que narra sua relação com Diadorim, suas guerras com homens, Deus, o diabo e os sentimentos humanos, estão presentes locais visitados por Rosa na travessia do cerrado mineiro. A Fazenda da Sirga, ponto de partida da viagem, aparece em Grande Sertão como o lugar onde Riobaldo passou a infância.

   O capataz da boiada que o escritor acompanhou durante os dez dias era Manuel Nardi. Sobre ele, Rosa escreveu o conto Manuelzão, no qual narra a história da construção de uma capelinha em homenagem à mãe de Manuel e a festa da inauguração. A primeira vez em que foi publicado no livro Corpo de Baile, o conto sobre a história de Manuelzão era chamado de Uma História de Amor. Antes de sair com a comitiva, Rosa ficou 35 dias na Fazenda da Sirga.

   De acordo com depoimentos feitos por Manuelzão, antes de começar a viagem com a boiada, Rosa pediu para que arranjassem no caminho velhas contadeiras de história, tocadores de viola, de pandeiro e cavaquinho e pessoas “antigas”, com histórias reais sobre fatos acontecidos no passado. Nascido em Cordisburgo em 1908, no norte Minas, Rosa se formou em medicina e seguiu carreira como diplomata, trabalhando em vários países da Europa. Morreu em 19 de novembro de 1967, três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras.

   Para o professor de literatura brasileira da Faculdade de Letras da USP (Universidade de São Paulo) Luiz Roncari, a viagem pelo cerrado de Minas Gerais só reforçou o conhecimento que Rosa acumulou durante toda a vida sobre a cultura e os costumes do povo mineiro e para dar uma base real e concreta à obra de ficção do escritor. “A viagem só veio complementar uma base sólida que ele já tinha”, afirma Roncari. Na longa narrativa feita por Riobaldo em Grande Sertão, o ex-jagunço sentencia que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.




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