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Peter Sellers obrigatório
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
15/09/2005 | 08:50
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A Vida e Morte de Peter Sellers. Filme com tal título, descaradamente biográfico, pode não insinuar grande coisa. Mas eis que a obra do diretor Stephen Hopkins, concorrente à Palma de Ouro em Cannes e recém-lançada em DVD para locação e venda direta (Warner, R$ 39,90 em média), configura-se em uma pequena surpresa e em um grande filme sobre a vida e a obra – ou sobre a vida e a morte – do ator Peter Sellers (1925-1980).

Antes de pressionado o botão play, muito parece conspirar contra o longa. Primeiro: produzido pela HBO, é um filme feito para TV, pertencente a um segmento que não goza da melhor das reputações, embora haja telefilmes e telefilmes. Segundo: o gênero das cinebiografias é terreno fértil em quantidade e estéril em qualidade, que quando não se pauta pelo "chapa-branquismo" é porque envereda pela energia especulativa para funcionar. Terceiro: haveria ator capaz de reproduzir, sem recursos apelativos, as macaquices de interpretação de Sellers, o inspetor Clouseau de A Pantera Cor-de-Rosa, o indiano chapliniano de Um Convidado Bem Trapalhão, o três-em-um de Doutor Fantástico, o videota de Muito Além do Jardim?

Por incrível que pareça, há: Geoffrey Rush, sujeito que você conhece como o capitão Barbossa de Piratas do Caribe, o personagem-título de Contos Proibidos do Marquês de Sade, o pianista esquizofrênico de Shine – Brilhante, o Leon Trotski de Frida e, agora, o Peter Sellers de A Vida e Morte de Peter Sellers.

O trabalho de Rush é outstanding, como diriam os norte-americanos; surpreendente, fabuloso, caricato e tragicômico conforme a necessidade. Aliás, tragicomédia talvez seja a melhor definição para o filme, resultado de uma sintonia fina entre o ator principal e o diretor Hopkins.

Sellers era um ator de muitas faces, exceto a própria, de acordo com a lenda corrente em Hollywood e com o livro de Roger Lewis no qual o filme se inspira. Criava obstinadamente personalidades outras, composições extremas que eram seus personagens, para compensar a que acreditava inexistente: a sua. Um dos laudos desse mecanismo é a frase, de sua autoria: "Eu não sei quem ou o que sou".

Hopkins – e Rush, porque parece impossível dissociar câmera e representação, tão íntimas – nos expõe a rotina às turras de Sellers com sua primeira mulher, Anne (Emily Watson); suas negociações intempestivas com diretores como Blake Edwards (John Lithgow) e Stanley Kubrick (Stanley Tucci); sua paixão platônica por Sophia Loren (Sonia Aquino); seu segundo casamento, com a atriz Britt Ekland (Charlize Theron), fruto de uma picaretagem astrológica; sua dependência da mãe superprotetora (Miriam Margolyes) e do pai pamonha (Peter Vaughn).

Relacionamentos problemáticos, muito em virtude da auto-confiança fracionada de Sellers alegada por Hopkins, diretor que cunhou a identidade estética da série 24 Horas e que agora ousa um filme que não se pretende propaganda nem registro factóide da vida de seu retratado. Deita a câmera sobre as manias de Sellers para entender sua natureza e, ao analisá-las, cria um artifício de exceção em se tratando da obrigatoriedade naturalista dos dramas hollywoodianos. Em discussões-chave da vida pessoal e profissional do astro, o próprio Sellers aparece travestido na pele de quem lhe é próximo – ora sua mãe, ora a mulher, ora Kubrick, ora Edwards – e conduz a personalidade alheia do modo que lhe convém; transforma amigos e familiares em projeções das suas vontades e fornece pano para manga para possíveis análises junguianas.

Geoffrey Rush arrasa na pele de uns 20 personagens diferentes, na verdade todos deformações de Sellers. E Hopkins não deixa por menos, ao fazer dessas intromissões do personagem Sellers na vida do homem Sellers um estudo irônico sobre as instituições do diálogo cinematográfico, como o campo/contracampo e o plano-seqüência. A Vida e Morte de Peter Sellers, quem diria, um filmaço.




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