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Robert Rodriguez faz cinema com muito condimento
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
01/08/2005 | 08:42
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Cachorro-quente, tem quem goste somente do combinado pão com salsicha e olhe lá, sem qualquer condimento. Por outro lado, há os apreciadores do sanduíche modelo escorredor, com tantos complementos que é preciso uma pós-graduação em acrobacia para degustá-lo. Por mais estúpida que pareça a metáfora, o cinema de Robert Rodriguez é assim, um mostruário de abusos, desproporções, demasias e excessos. Ruim? Não, desde que se compreenda o porquê de tanta mostarda e ketchup e se aprenda a apreciar uma visão incomum de cinema. Uma visão escandalosa.

Com o novo Sin City, em cartaz em três salas da região, parte da crítica voltará a colocar Rodriguez do lado esquerdo do peito, como se o diretor texano de 37 anos tivesse parado no tempo desde El Mariachi (1992), o tal filme-lenda que foi produzido por US$ 7 mil, segundo dizem. Essa mesma porção de críticos provavelmente se reafeiçoa agora ao cineasta mais pela matéria-prima, "nobre", de Sin City - a coleção de histórias em quadrinhos de Frank Miller, creditado como co-diretor - e menos pelo filme em si, seja como produto avulso ou como item novo na linha de coerência filmográfica e filosófica do autor.

Em Sin City prevalece o conceito visual de Rodriguez, um projeto de alta fidelidade com a obra gráfica de Miller, ao animar em enquadramentos e contrastes os contornos estáticos do desenhista. Está em jogo aqui o limite entre cinema e quadrinhos, e as particularidades formais de cada linguagem, às vezes tão próximas nas suas limitações de preencher um espaço retangular. Rodriguez promove um caso raro em que o filme guia-se pelo conceito estético de uma outra linguagem, até para contestar o que é peculiar ao quê. Uma exceção à regra da simples escultura de personagens no gênero de filmes adaptados de gibis - uma associação já vista, mas em menor intensidade, nos dois Homem-Aranha de Sam Raimi (com a arquitetura do movimento de câmera em concordância com a locomoção do personagem) e nos dois Batman de Tim Burton (com o impulso expressionista entre personagem e ambiente).

Perspectiva infantil - Uma reflexão sobre postura que encontra associação no também recente As Aventuras de Sharkboy e Lavagirl em 3D, igualmente em cartaz no Grande ABC. Aqui, Rodriguez procura o ricochete entre cinema e a imaginação de um menino de 7 anos, seu filho Racer, que concebeu o argumento da aventura infantil. O que pode parecer "babaca", "ingênuo", trata-se na verdade da interpretação possível de um suporte material a um universo imaterial, o onírico e suas respectivas transfigurações do real - por exemplo, a relação ruidosa entre o pai e a mãe do protagonista e a incompatibilidade dos heróis.

Nessa direção, de um cinema aderente a tudo quanto é referencial e material, é necessário o controle absoluto da produção. Rodriguez é centralizador: além de diretor de seus filmes, usualmente é produtor, compositor de trilha sonora, diretor de fotografia, editor, operador de câmera e supervisor de efeitos especiais. Possui seu próprio rancho de produção, os estúdios Troublemaker (que em português dos bons significa "encrenqueiro"), onde opera pré e pós-produção de suas obras.

Criou para si próprio a persona do carpinteiro cinematográfico, dos tempos de El Mariachi aos de Sin City. Nada lhe obsta a arte, nem dinheiro nem a impotência de materializar o que lhe passa pelo cocuruto. Um faz-tudo que realiza como quer o que lhe visita a veneta no campo do cinema popular. Trabalha numa região artística que prioriza a reflexão delivery, em que basta comer e pronto. Eis o real valor de Rodriguez e sua importante posição no cinema contemporâneo.

Cinema lúdico - Seu cinema é lúdico, não só porque solicita ao espectador que coloque óculos 3D como nas exibições de Sharkboy e de Pequenos Espiões 3 - Game Over (2003). É um cinema que macaqueia com os exageros a que a própria linguagem previamente se submeteu. Em Sin City existe uma fetichização, em estética e diálogos, do sexo e da violência como reconhecimento do instinto humano, como em muitas produções. Só que essa análise não se expressa na forma de palestra audiovisual. A diegese rodriguiana não se dá sem ironia, uma combinação aparentemente grosseira em forma e conteúdo. Em uma cena de Sin City, Marv (Mickey Rourke) arranca informações de um escroque ao segurá-lo pela cabeça e raspar suas feições no asfalto com o carro em movimento. Repulsa e riso afloram ao mesmo tempo, num meio ambiente noir que é resultado de anos e anos de saturação da violência como estética. Rodriguez ri disso, mas não sem rir de si próprio.

Abre-se a catraca então para a concepção do herói, esse porto seguro da ficção, no cinema de Rodriguez. Essa figura está sempre em xeque e nos sujeitos mais inesperados: os assaltantes que viram mocinhos mediante a ameaça de vampiros em Um Drink no Inferno (1996); os pirralhos que assumem o papel dos pais-espiões na trilogia

Pequenos Espiões (2001, 2002, 2003); o músico que vira mito popular na trilogia do mariachi (El Mariachi; Balada de um Pistoleiro, 1995; e Era Uma Vez no México, 2003); e a relação um tanto curiosa entre alunos e professores no terror A Prova Final (1998).

Esse heroísmo em suspensão encontra seu cume justamente em Sin City e no ótimo Era Uma Vez no México, com uma quantidade de vilões transitórios capaz de superlotar uma cela do Carandiru e que em seus minutos iniciais apresenta a engenharia do mito, na narração exagerada do personagem de Cheech Chong para o de Johnny Depp, sobre o mariachi vivido por Antonio Banderas. Vive-se como pode, lembra-se como quer - um atestado de Rodriguez sobre sua própria obra, uma arte produzida sempre com lentes de aumento, estética e filosoficamente.

Gargalhar é preciso - É a mesma razão que justifica a opção de Rodriguez por apelar ao cinema de gênero e levá-lo às últimas conseqüências, para expor ao ridículo e gargalhar sobre o adestramento do olhar pelos códigos do cinema de terror (em Um Drink no Inferno e A Prova Final), dos filmes de espionagem (Pequenos Espiões), dos faroestes (Era Uma Vez no México) e do cinema noir (Sin City). Sem perder de vista suas referências: Sérgio Leone, Don Siegel, John Carpenter, a fantasia bidimensional das produções sessentistas da Morningside (como Sinbad e Jasão e os Argonautas) e o filme B.

Robert Rodriguez tira o chapéu para poucos. Quando o tira, é de forma bastante irreverente, com uma postura crítica baseada na estetização ilimitada e no super-aquecimento das reputações, de seus mestres e de seus personagens. E coloca em jogo a sua própria reputação, ao escancarar os vícios e as repetições de sua obra na estrutura de trilogias, como em Pequenos Espiões, El Mariachi e, agora, Sin City, que tem continuações previstas para 2006 e 2008. Auto-crítica, sim; mas com um sorriso maroto ao canto da boca.




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