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Tentar se reestruturar é muito difícil

Em entrevista ao Diário, a viúva de Luiz Cezar Martins Cunha diz que a vida está 'de cabeça para baixo'

Por Dérek Bittencourt
Do Diário do Grande ABC
29/11/2017 | 07:00
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Celso Luiz/DGABC


Era aproximadamente 19h30 de segunda-feira, 28 de novembro de 2016, quando o fisiologista da Chapecoense Luiz Cezar Martins Cunha, o Cezinha, ligou da Bolívia a Santo André para avisar a mulher, Fabienne Belle, que estava embarcando rumo a Medellín, na Colômbia. Mal sabiam que era o último contato entre o casal, junto havia 22 anos, mas que acabou separado pela tragédia aérea que matou 71 pessoas entre jogadores, comissão técnica, dirigentes, jornalistas e tripulação do voo da LaMia.

Em entrevista ao Diário, a viúva disse que a vida está “de cabeça para baixo”. Ela, que abriu mão da carreira para acompanhar o marido, busca agora, na Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo da Chapecoense, a qual preside, uma saída para “trabalhar o luto”. “Temos cerca de 200 pessoas afetadas diretamente por essa tragédia que precisam de oportunidade de reescrever suas vidas, como o clube teve de reconstruir sua trajetória.”

Até o momento, cada família recebeu somente R$ 61 mil de doações e jogos beneficentes realizados pelo clube catarinense. A burocracia em lidar com as legislações de três países – Brasil, Colômbia e Bolívia – dificulta o andamento das investigações e traz angústia àqueles que só querem Justiça.

Um ano após a tragédia, como está sua vida?
De cabeça para baixo. É muito difícil. O impacto do acidente, a violência que é na vida de uma pessoa é uma dor indescritível. Para a gente conseguir colocar força para levantar, fazer as coisas, tentar se reestruturar, reinventar, é muito difícil.

Você está à frente da associação de familiares e amigos. O que a levou a este posto?
Essa tragédia gerou muitas outras na minha casa e na casa de cada família. Nos deparamos com questões que jamais pensei que pudessem acontecer na vida de uma pessoa. Percebi que o acidente aéreo tinha deixado como herança vários caminhos que, se não nos uníssemos, ficariam sem resposta, sem chegar ao fim. Isso era a angústia que eu tinha, outras esposas também, então conforme a gente ia se deparando com as dificuldades que encontrávamos, nascia a necessidade de buscar essas respostas. E foi isso que acabou nos levando. Percebemos que se a gente não desse uma voz às famílias, não tivesse coletividade para falar, muitas questões seriam deixadas de lado. Mas, antes de tudo, todas nós sabíamos que precisávamos honrar as memórias dos nossos maridos, filhos, das pessoas que estavam lá naquele avião.

Muito se debate nos encontros entre os representantes jurídicos do clube e familiares sobre a dificuldade para se ter acesso à documentação das investigações. Qual o motivo para tantos problemas e qual a maior preocupação?
Estamos lidando com uma tragédia que abrange três países, cada um tem legislação própria, burocracia própria e forma de ser gerido. Então são três soberanias. Temos grande dificuldade do país-mãe, que é a Bolívia. Tudo muito nebuloso.

Como está o processo com relação às indenizações às famílias?
As esposas receberam as indenizações cabíveis dentro da Lei Pelé e a do clube. Isso é individual. De ajudas, doações, jogos beneficentes, recebemos cerca de R$ 61 mil. Mas do acidente, nada. Teríamos apólice de US$ 25 milhões que nos foi negada por cláusula de exclusão geográfica, porque o avião não poderia ir para a Colômbia. Então há um contrassenso. A Bisa, seguradora responsável, contratou escritório para negociar termo de ajuda humanitária para as famílias, que contemplaria valor de US$ 200 mil. Porém, para a gente receber esse valor, teríamos de dar quitação para todos os envolvidos no acidente: companhia, seguradora, resseguradora, proprietário de aeronave e governo. Mas não temos conclusão das investigações, então, se por ventura surgir algum réu nessa investigação, perdemos todos nossos direitos a partir do momento que dermos quitação. Isso acaba impedindo que façamos o acordo, até porque estão surgindo novos elementos na investigação. A associação tem informações que um político do alto escalão do governo boliviano está envolvido também nessa companhia aérea, com a LaMia. É um político abaixo do presidente. É nome muito forte dentro da Bolívia. Estamos averiguando e tentando essa confirmação, mas recebemos a informação através do Ministério das Relações Exteriores.

O surgimento de informações que a LaMia teria donos diferentes dos divulgados inicialmente interferem neste ponto de indenizações e evolução do processo?
Sim, o Ricardo Albacete (ex-senador da Venezuela) e a filha, Loredana. São dois lados: a dificuldade pelo nível de corrupção que estamos enfrentando lá, mas por outro lado coloca mais um réu importante na cadeia. Que venham a ser as futuras ações contra os responsáveis.

Vocês estão contando com auxílio do governo brasileiro? Houve um encontro recente com os senadores Romário e Vicentinho Alves, ele foi benéfico?
Sem o apoio do governo não conseguiríamos ter suporte. Por exemplo, os despachos com o Ministério das Relações Exteriores nos trouxeram muitas informações. A ajuda do Senado é importante porque nos dão as direções, têm realmente nos auxiliado bastante.

O Cezinha foi profissional muito competente em sua área. Amigos e colegas falaram sobre o quanto a fisiologia perdeu com sua morte. O que pode dizer a respeito?
Antes de ele ser profissional, era ser humano ímpar, de lealdade, retidão fora do comum. Pessoa que amava o que fazia. A grande motivação era o amor que tinha pela profissão. Foi trabalhar como fisiologista, depois evoluiu para a área da coordenação científica, porque a ciência aplicada era uma paixão. Descobriu muitos caminhos que auxiliavam. Tinha forte ligação com o Caio Júnior (técnico da Chape, também morto no acidente). Se entendiam bem porque o sistema tático tinha exigências peculiares. O Cezar entendia bem a dinâmica e auxiliava, dava suporte com o conhecimento dele sobre quais os caminhos usados para atingir a performance necessária. A paixão pelo que fazia o motivava todo dia a fazer o melhor. Trabalhou no Santo André, quatro anos no São Caetano, seleção da Arábia, Grêmio, Atlético-MG...

Qual foi o último contato entre vocês? Como foi informada do acidente e quando acabou sabendo sobre a confirmação de que o Cezinha estava entre as vítimas?
Toda folga (ele) vinha a Santo André. Veio no sábado (antevéspera da tragédia), passou a tarde e o domingo de manhã. Foi embora meio-dia para poder ir ao hotel, ao jogo (contra o Palmeiras, pelo Brasileirão, no Allianz Parque), de volta ao hotel e para a viagem. Embarcaram no voo da BoA. Quando chegaram na Bolívia, me ligou. Quando deu o horário que ficou de me ligar, por volta de 1h, e ele não ligava, acordei com essa má sensação no coração e aí fui procurar o voo dele no FlightAware (site que acompanha voos em tempo real), e ali já deu que não tinha sido encontrado. Então eu sabia que algo muito grave tinha acontecido. Fui buscando informações e, por volta de 1h30, já estava em desespero. Liguei para um amigo dele da Colômbia, pessoa que trabalha na seleção, e falei ‘aconteceu alguma coisa com o voo do Cezar, pode buscar informação’. Ele pediu 15 minutos, foi até o aeroporto e aí me avisou o que tinha acontecido. Comecei a entrar em contato com todo mundo de Chapecó, ainda antes das 2h. Fui uma das primeiras a saber. Ninguém me respondia, porque todo mundo põe o celular no silencioso. Às 5h, estava todo mundo sabendo, apavorado. Tinha esperança que tivesse sobrevivido, porque era muito saudável, forte. Eram umas 6h, estavam organizando voo para a gente ir para lá e coloquei (na mala) uma roupa, com o tênis preferido dele, daquelas coisas que a gente faz na esperança. Quando foi umas 8h, tudo aquilo começou a fazer sentido, falei ‘ele não sobreviveu’. A última esperança acabou e fui até a casa da mãe dele dar a notícia. Ele era filho único, ela viúva, não tem mais família e fui a responsável por dar a notícia que ela tinha perdido o filho. Fui para Chapecó na terça-feira. Tinha previsão que iríamos para a Colômbia, o que acabou não acontecendo. Por um lado foi bom, porque ali era campo de guerra, mas, por outro, trouxe um peso para mim, porque recebi o caixão dele lacrado. Sei que existem protocolos de reconhecimento de corpos, que são fidedignos, mas nunca pude ver o rosto dele, como ficou, só imaginar os últimos momentos e que eu não estava. Situação que ninguém sonha passar e quem passa não acredita estar passando. Às vezes ainda acordo achando que foi um pesadelo.

O que você conseguiu resgatar de itens do Cezinha?
Foi crueldade absurda o que fizeram. Recebi a mala do meu marido via Correios na porta da minha casa. Parecia que estavam me devolvendo ele fatiado, em pedaços. (...) Eles foram saqueados horas depois de terem caído. Isso é uma brutalidade, crime contra a dignidade humanidade fora do comum. Para as pessoas aquilo são objetos que vão ser guardados, mas para as famílias são o que resta daqueles que eles deixaram subir naquele avião. Consegui a mala, praticamente toda pronta, veio avariada, estragada, com buraco, roupa suja de barro. De ver o estado da mala, imaginei o estado do corpo. E, 60 dias após, vieram os óculos que estava usando no momento do acidente.

Houve uma solenidade há algumas semanas em Chapecó para homenagear as vítimas. Como foi o encontro?
Inicialmente seria nos dias 28 e 29. Porém, nestes dias as famílias precisam de privacidade, porque cada um tem o direito de vivenciar essa dor, esse luto, à sua maneira. Então, a associação solicitou ao clube que o evento fosse realizado nas semanas anteriores. No dia 11 tivemos entrega de medalhas de honra ao mérito, palestra sobre luto organizada entre a associação e o núcleo da PUC-SP. E a noite teve evento ecumênico. Neste, não consegui ficar até o fim, estava pesado demais e me retirei.

Como é a relação entre as famílias e a Chapecoense hoje?
Durante os primeiros nove meses enfrentamos muitas dificuldades. Aquela apropriação da tragédia pela instituição, o marketing da tragédia que foi feito em cima, foram coisas que deixaram marcas nas famílias, dor muito grande. E a falta de assistência. O marketing sobre a tragédia só beneficiava a instituição. A visita ao Papa, os jogos beneficentes... Antes, todas as verbas que entraram, a Chapecoense dava 25% para as famílias e pegava 75%: eram 50% para a reconstrução deles e 25% para fazerem um fundo e pagar ações trabalhistas. É a mesma coisa que você estar me devendo e pegar dinheiro meu para me pagar. Absurdo. O mínimo plausível era 50% para cada parte. A partir de agosto o clube entendeu, até porque a imagem começou a ficar muito arranhada, a importância de realmente abrir canal de diálogo com as famílias. Estreitamos a relação.

Em certa entrevista, você falou em ‘acidente anunciado’...
Era evidente que iria acontecer. Uma companhia aérea que fazia voos com pouco combustível era nítido que uma hora a roleta russa ia na cabeça de alguém. Infelizmente, foi nas nossas. Então nossa luta é que não aconteça nunca mais. O prejuízo humano, em todas as dimensões, é absurdo. Isso não pode ter acontecido em vão.

O que espera e quer daqui para frente pela associação e pessoalmente?
Hoje tenho só 10% do meu coração voltado para essa luta, essa batalha da dignidade à memória dessas vítimas. Como associação espero que consigamos atingir a Justiça da forma mais ampla possível, para que cada família tenha assegurado seu direito de seguir sua trajetória em paz, nem que seja mínima. E como pessoa, espero poder reescrever minha história. Estamos em terra dizimada que, para reconstruir, é difícil porque a peça principal nunca mais vai voltar. Mas construir a partir da herança moral que ele me deixou.
 




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